That night the Baron dreamt of many a wo; / And all his warrior-guests, with shade and form / Of witch and demon, and large coffin-worm, / Were long be-nightmared.
Keats
Pobre de quem da infância lembra apenas de seus medos e tristezas. Infeliz daquele que recorda as horas solitárias em salas vastas e sombrias com reposteiros marrons e loucas fileiras de livros arcaicos, ou as vigílias apavoradas nos bosques crepusculares de árvores imensas, grotescas, entulhadas de trepadeiras cuja rama entrelaçada agita-se silenciosa nas alturas longínquas.
Essa sina reservaram-me os deuses — a mim, o aturdido, o frustrado, o estéril, o prostrado. E, no entanto, me alegro e me aferro com voracidade a essas memórias fanadas quando meu espírito ameaça por um momento se atirar para o outro.
Não sei onde nasci, exceto que o castelo era muitíssimo velho e medonho, repleto de passagens sombrias e com tetos altos, onde tudo que os olhos conseguiam alcançar era teias de aranha e sombras. As pedras dos corredores em ruínas pareciam estar sempre úmidas demais e um cheiro execrável espalhava-se por tudo como se exalasse dos cadáveres empilhados das gerações passadas.
Estava sempre escuro e eu costumava acender velas e olhar fixamente para elas em busca de consolo, e o sol não brilhava no lado de fora com aquelas árvores terríveis elevando-se para além da mais alta torre acessível. Havia uma torre escura que subia além da copa das árvores para o céu invisível, mas uma parte dela havia ruído e não se podia galgá-la senão escalando as paredes abruptas, pedra por pedra.
Devo ter morado muitos anos neste lugar, mas não posso medir o tempo. Criaturas devem ter cuidado de minhas neces¬sidades, mas não consigo lembrar-me de ninguém além de mim, ou de qualquer coisa viva, além dos ratos, aranhas e morcegos silenciosos. Imagino que o ser que cuidou de mim deve ter sido terrivelmente idoso, pois minha primeira noção de um ser vivo era algo parecido comigo, mas deformado, enrugado e decadente como o castelo.
Para mim, nada havia de bizarro nos ossos e esqueletos que se espalhavam por algumas criptas de pedra no recesso das fundações; em imaginação, eu associava essas coisas à vida cotidiana e as considerava mais naturais que as ilustrações coloridas de seres vivos que encontrava em muitos daqueles livros bolorentos. Nesses livros, aprendi tudo que sei. Nenhum professor me estimulou nem orientou, e não me recordo de ter ouvido alguma voz humana naqueles anos todos — nem sequer a minha própria, pois, apesar de falar em pensamento, jamais tentei falar em voz alta.
Minha aparência era também inimaginável, pois, não havendo espelhos no castelo, eu me considerava, por instinto, parecido com as imagens de jovens que via desenhadas ou pintadas nos livros. Tinha consciência de ser jovem porque minhas recordações eram ínfimas.
No exterior, além do fosso pútrido e debaixo das soturnas, silenciosas árvores, eu muitas vezes me deitava e sonhava durante horas sobre o que lera nos livros e em sonhos me imaginava em meio às multidões alegres no mundo ensolarado além da floresta interminável.
Certa vez tentei escapar da floresta, mas, à medida que fui afastando-me do castelo, a escuridão foi-se adensando e o ar enchendo-se de horrores e voltei numa correria vertiginosa temendo perder-me num labirinto de trevas silenciosas.
E assim, durante crepúsculos intermináveis, eu sonhei e esperei, embora não soubesse pelo quê. Foi então que, na lúgubre solidão, meu anseio por luz tornou-se de tal forma arrebatador, que eu já não conseguia repousar e erguia as mãos em súplica para a única torre negra em ruínas que se erguia até além da floresta para o invisível céu exterior, até que resolvi enfim escalar aquela torre, apesar do risco de despencar; era melhor vislumbrar o céu e morrer do que viver sem jamais ter avistado o dia.
No úmido crepúsculo, eu galguei a escada de pedra gasta e envelhecida até o nível onde ela terminava e dali para a frente me sustive, com grande risco, em pequenos apoios para os pés que conduziam para cima. Pavoroso e terrível era aquele cilindro de rocha morto e sem escada; escuro, arruinado, deserto e sinistro, com morcegos espantados esvoaçando com asas silenciosas.
Mais pavorosa e terrível ainda era a lentidão de meu progresso. Por mais que subisse, a escuridão ao alto não se dissipava e uma nova friagem, como que de um mofo entranhado e venerável, assediava-me. Estremeci ao imaginar por que não avistava a luz e teria olhado para baixo se ousasse. Imaginei aquela escuridão descendo abruptamente sobre mim e tateei em vão com a mão livre procurando uma fresta de janela por onde pudesse espiar para fora e para o alto, tentando avaliar a altura a que chegara.
De repente, depois de um infinito arrastar às escuras por aquele precipício côncavo e de-sesperador, senti minha cabeça locar num objeto sólido e percebi que havia atingido o teto, ou, pelo menos, algum tipo de piso. No escuro, ergui a mão livre e testei o obstáculo, percebendo que era de pedra e inamovível.
Logo em seguida, iniciei um contorno mortal da torre, agarrando-me a toda saliência que o paredão escorrega¬dio me pudesse oferecer, até que a minha mão investigadora sentiu o obstáculo ceder e tentei retomar a subida empurrando a laje ou porta com a cabeça usando as duas mãos na temerária escalada. Acima, não havia nenhuma luz visível e, quando minhas mãos avançaram mais um pouco, percebi que ainda não fora daquela vez o desfecho de minha escalada, pois a laje era o alçapão de uma passagem que conduzia a uma superfície plana de pedra cuja circunferência era maior do que a parte inferior da torre, com certeza o piso de alguma câmara de ob¬servação elevada e espaçosa.
Arrastei-me cuidadosamente pela passagem tentando impedir que a pesada laje caísse de novo no lugar, mas falhei nessa última tentativa. Caído exausto sobre o chão de pedra, ouvi as reverberações lúgubres de sua queda, mas achei que, quando fosse necessário, poderia erguê-la de novo.
Acreditando ter chegado a uma altura prodigiosa, muito acima das malditas árvores da floresta, levantei-me do chão com dificuldade e sai tateando à procura de janelas por onde pudesse olhar, pela primeira vez, o céu, a Lua e as estrelas sobre os quais havia lido. Mas em todos os lados a tentativa foi baldada.
Tudo que encontrei foram enormes prateleiras de mármore sustendo caixas oblongas e repulsivas cujo tamanho me inquietou. Mais e mais eu refletia e tentava imaginar que segredos veneráveis poderiam abrigar-se nessa câmara elevada, isolada por tantos séculos do castelo abaixo. Então, de repente, minhas mãos deram com uma passagem bloqueada por um portal de pedra decorado com curiosos entalhes cinzelados.
Experimentando-a, percebi que estava trancada, mas com um esforço supremo superei todos os obstáculos e forcei-a para dentro. Ao fazê-lo, fui tomado pelo mais puro êxtase que já conhecera, pois, brilhando mansamente através de uma grade de ferro trabalhado e um curto lance de degraus de pedra des¬cendente, lá estava a Lua, cheia e radiante, que eu jamais vira, exceto em sonhos e em nebulosas visões que nem sequer ousaria chamar de lembranças.
Imaginando ter chegado o topo do castelo, comecei a subir às pressas os poucos degraus além da porta, mas uma nuvem encobriu de repente a Lua, fazendo-me tropeçar e prosseguir com maior vagar na escuridão. Ainda estava muito escuro quando atingi a grade — que experimentei com cuidado e descobri que estava destrancada, mas que não abri temendo cair da altura espantosa a que havia chegado. E a Lua então ressurgiu.
O mais infernal de todos os choques é aquele causado pelo inesperado abismai e o inacreditável grotesco. Nada do que eu sofrerá poderia comparar-se ao horror que agora presenciava, com as aberrações maravilhosas que aquela visão provocava. A visão, em si, era ao mesmo tempo banal e estarrecedora, pois se tratava do seguinte: em vez de uma perspectiva estonteante de copas de árvores vistas de uma altura imponente, estendia-se ao meu redor além da grade nada menos que o terreno sólido, ornamentado e dividido por placas e colunas de mármore e dominado por uma antiga igreja de pedra cujo cone em ruínas reluzia pálido ao luar.
Sem me dar conta de meus atos, abri a grade e saí cambaleando para fora, pelo caminho de cascalho branco que se estendia para longe em duas direções. Minha mente, por atônita e caótica que estivesse, conservava a obstinada avidez pela luz e nem mesmo o prodígio fabuloso que acontecera poderia conter meu ímpeto. Eu não sabia, nem me importava em saber, se a minha experiência era fruto de insânia, sonho ou magia, determinado como estava a fitar o esplendor e a alegria a qualquer custo.
Eu não sabia quem eu era, ou o que era, ou em que consistia tudo aquilo ao meu redor, mas, enquanto avançava aos tropeções, fui tomando consciência de uma recordação latente e alarmante que, de certa forma, cadenciou os meus passos. Passei por baixo de um arco daquela região forrada de lajes e colunas e errei pelo campo aberto, seguindo às vezes pela estrada visível, outras a abandonando e caminhando pelos prados onde ruínas esparsas sugeriam a presença antiga de uma estrada abandonada.
Em certa altura, cruzei a nado um rio caudaloso onde ruínas de alvenaria cobertas de musgo sugeriam uma ponte havia muito desaparecida. Duas horas devem ter transcorrido até eu alcançar o que parecia ser o meu destino, um venerável castelo coberto de hera no meio de um parque arborizado, de maneira curiosa familiar, mas que ainda assim me causou uma intrigante perplexidade. Notei que o fosso estava cheio e que algumas daquelas torres bastante conhecidas estavam em ruínas, e que havia novas alas para confundir o observador. Mas o que observei com especial interesse e satisfação foram as janelas abertas — profusamente iluminadas e deixando escapar os sons da mais alegre das orgias.
Aproximando-me de uma delas, olhei para dentro e vi um grupo de pessoas em trajes bizarros divertindo-se e conversando com animação. Ao que me parecia, eu jamais tinha ouvido uma fala humana e só poderia supor vagamente o que estavam dizendo. Algumas feições me sugeriram recordações muito remotas, outras me eram por completo estranhas.
Saltei então pela janela baixa para dentro do salão resplendente, saindo assim do meu único momento luminoso de esperança para a mais negra comoção de desespero e percepção. O pesadelo caiu como um raio, pois, mal havia entrado, presenciei uma das mais terrificantes demonstrações que jamais imaginei.
Assim que cruzei o peitoril, o grupo todo caiu num estado de terror súbito e inesperado de tremenda intensidade, que fazia os rostos contraírem-se e provocava gritos apavorados em quase todas as gargantas. A debandada foi geral e, em meio ao clamor e o pânico, muitos perderam os sentidos e foram arrastados pelos enlouquecidos companheiros em fuga. Muitos taparam os olhos com as mãos, atirando-se numa correria cega e desajeitada para escapar, contornando móveis e chocando-se contra as paredes até conseguirem alcançar uma das muitas portas.
Os gritos eram apavorantes e, quando fiquei sozinho e atônito no salão brilhante escutando o apagar de seus ecos, estremeci imaginando o que poderia estar invisível à espreita, ao meu lado. A primeira vista, o salão me pareceu deserto, mas, quando caminhei na direção de uma das recâmaras, pensei ter vislumbrado ali uma presença — uma sugestão de movimento além da passagem em arco dourada que conduzia para um salão parecido com o primeiro.
Aproximando-me do arco, comecei a perceber melhor aquela presença e, então, com o primeiro e último som que jamais proferi — um uivo pavoroso que me causou quase tanta repugnância quanto a coisa medonha que o causara —, enxerguei, com plena e apavorante nitidez, a inconcebível, indescritível e indizível monstruosidade que, com seu mero surgimento, havia transformado um grupo alegre numa horda de fugitivos delirantes.
Não posso sequer sugerir com o que ela parecia-se, pois era uma combinação de tudo que é impuro, repugnante, repudiado, anormal e odioso. Era a sombra espectral de decadência, antigüidade e dissolução, o pútrido, gotejante espectro de uma revelação doentia, o horrível desnudamento daquilo que aterra misericordiosa deveria para sempre ocultar. Deus sabe que aquilo não era deste mundo — ou não era mais deste mundo —, mas, para meu horror, eu percebi em seu perfil carcomido, com os ossos à mostra, uma abominável caricatura da forma humana e, em suas roupas mofadas e em frangalhos, uma qualidade indizível que me arrepiou ainda mais.
Aquilo quase me paralisou, mas não foi o bastante para eu não esboçar uma débil tentativa de fuga, um salto para trás que não conseguiu quebrar o encanto com que o monstro inominável e silencioso me prendia. Meus olhos, enfeitiçados pelos globos oculares vidrados que os fitavam de maneira asquerosa, não queriam fechar-se, embora uma piedosa turvação só me permitisse ver o terrível objeto de maneira indistinta depois do primeiro impacto.
Tentei erguer a mão e tapar os olhos, mas tinha os nervos tão abalados, que o braço não obedeceu à minha vontade. A tentativa, porém, foi quanto bastou para me perturbar o equilíbrio, e precisei dar vários passos cambaleantes para a frente para não cair. Ao fazê-lo, tive uma súbita e dolorosa consciência da proximidade da coisa sepulcral, meio que imaginei ouvir a sua respiração cava e repulsiva. Quase enlouquecido, consegui mesmo assim estender a mão para espantar a fétida aparição que estava tão perto, quando, num segundo cataclísmico de um pesadelo cósmico e um acidente infernal, meus dedos tocaram a mão putrefata do monstro estendida por baixo do arco dourado.
Eu não gritei, mas todos os fantasmas demoníacos que cavalgam o vento noturno uivaram por mim quando, naquele mesmo instante, desabou sobre a minha mente uma única e fugaz avalanche de uma lembrança de aniquilar a alma. Eu percebi naquele instante tudo que havia acontecido; minhas recordações foram além do assustador castelo e das árvores, e reconheci o edifício modificado onde eu estava agora; reconheci, mais terrível de tudo, a ímpia abominação que eu tinha à minha frente enquanto afastava meus dedos imundos dos seus.
Mas, no cosmo, há sofrimento e há bálsamo. E esse bálsamo é nepente. No supremo terror daquele instante, esqueci-me do que me havia horrorizado e o surto de negra recordação desfez-se num pandemônio de imagens reverberantes. Fugi num sonho daquele edifício assombrado e maldito e célere corri, em silêncio, sob o luar.
Retornando ao cemitério de mármore, desci os degraus e descobri que não conseguiria mover o alçapão de pedra, mas isto não me aborreceu, porque eu detestava aquele castelo antigo e aquelas árvores. Agora eu cavalgo com os fantasmas amáveis e zombeteiros ao vento noturno e brinco durante o dia entre as catacumbas de Nephren-Ka no vale oculto e proibido de Hadoth, à margem do Nilo. Sei que aquela luz não é para mim, exceto a da Lua sobre as sepulturas de pedra do Neb, bem como nenhuma alegria, salvo as indescritíveis orgias de Nitokris sob a Grande Pirâmide, mas, em minha nova selvageria e liberdade, eu quase agradeço a amargura da alienação.
Pois, embora tenha-me acalmado, sempre saberei que sou um intruso, um estranho neste século e entre os que ainda são homens. Isto eu soube desde que estendi meus dedos para a abominação no interior da enorme moldura dourada, estendi meus dedos e toquei uma superfície fria e sólida de vidro polido.
Essa sina reservaram-me os deuses — a mim, o aturdido, o frustrado, o estéril, o prostrado. E, no entanto, me alegro e me aferro com voracidade a essas memórias fanadas quando meu espírito ameaça por um momento se atirar para o outro.
Não sei onde nasci, exceto que o castelo era muitíssimo velho e medonho, repleto de passagens sombrias e com tetos altos, onde tudo que os olhos conseguiam alcançar era teias de aranha e sombras. As pedras dos corredores em ruínas pareciam estar sempre úmidas demais e um cheiro execrável espalhava-se por tudo como se exalasse dos cadáveres empilhados das gerações passadas.
Estava sempre escuro e eu costumava acender velas e olhar fixamente para elas em busca de consolo, e o sol não brilhava no lado de fora com aquelas árvores terríveis elevando-se para além da mais alta torre acessível. Havia uma torre escura que subia além da copa das árvores para o céu invisível, mas uma parte dela havia ruído e não se podia galgá-la senão escalando as paredes abruptas, pedra por pedra.
Devo ter morado muitos anos neste lugar, mas não posso medir o tempo. Criaturas devem ter cuidado de minhas neces¬sidades, mas não consigo lembrar-me de ninguém além de mim, ou de qualquer coisa viva, além dos ratos, aranhas e morcegos silenciosos. Imagino que o ser que cuidou de mim deve ter sido terrivelmente idoso, pois minha primeira noção de um ser vivo era algo parecido comigo, mas deformado, enrugado e decadente como o castelo.
Para mim, nada havia de bizarro nos ossos e esqueletos que se espalhavam por algumas criptas de pedra no recesso das fundações; em imaginação, eu associava essas coisas à vida cotidiana e as considerava mais naturais que as ilustrações coloridas de seres vivos que encontrava em muitos daqueles livros bolorentos. Nesses livros, aprendi tudo que sei. Nenhum professor me estimulou nem orientou, e não me recordo de ter ouvido alguma voz humana naqueles anos todos — nem sequer a minha própria, pois, apesar de falar em pensamento, jamais tentei falar em voz alta.
Minha aparência era também inimaginável, pois, não havendo espelhos no castelo, eu me considerava, por instinto, parecido com as imagens de jovens que via desenhadas ou pintadas nos livros. Tinha consciência de ser jovem porque minhas recordações eram ínfimas.
No exterior, além do fosso pútrido e debaixo das soturnas, silenciosas árvores, eu muitas vezes me deitava e sonhava durante horas sobre o que lera nos livros e em sonhos me imaginava em meio às multidões alegres no mundo ensolarado além da floresta interminável.
Certa vez tentei escapar da floresta, mas, à medida que fui afastando-me do castelo, a escuridão foi-se adensando e o ar enchendo-se de horrores e voltei numa correria vertiginosa temendo perder-me num labirinto de trevas silenciosas.
E assim, durante crepúsculos intermináveis, eu sonhei e esperei, embora não soubesse pelo quê. Foi então que, na lúgubre solidão, meu anseio por luz tornou-se de tal forma arrebatador, que eu já não conseguia repousar e erguia as mãos em súplica para a única torre negra em ruínas que se erguia até além da floresta para o invisível céu exterior, até que resolvi enfim escalar aquela torre, apesar do risco de despencar; era melhor vislumbrar o céu e morrer do que viver sem jamais ter avistado o dia.
No úmido crepúsculo, eu galguei a escada de pedra gasta e envelhecida até o nível onde ela terminava e dali para a frente me sustive, com grande risco, em pequenos apoios para os pés que conduziam para cima. Pavoroso e terrível era aquele cilindro de rocha morto e sem escada; escuro, arruinado, deserto e sinistro, com morcegos espantados esvoaçando com asas silenciosas.
Mais pavorosa e terrível ainda era a lentidão de meu progresso. Por mais que subisse, a escuridão ao alto não se dissipava e uma nova friagem, como que de um mofo entranhado e venerável, assediava-me. Estremeci ao imaginar por que não avistava a luz e teria olhado para baixo se ousasse. Imaginei aquela escuridão descendo abruptamente sobre mim e tateei em vão com a mão livre procurando uma fresta de janela por onde pudesse espiar para fora e para o alto, tentando avaliar a altura a que chegara.
De repente, depois de um infinito arrastar às escuras por aquele precipício côncavo e de-sesperador, senti minha cabeça locar num objeto sólido e percebi que havia atingido o teto, ou, pelo menos, algum tipo de piso. No escuro, ergui a mão livre e testei o obstáculo, percebendo que era de pedra e inamovível.
Logo em seguida, iniciei um contorno mortal da torre, agarrando-me a toda saliência que o paredão escorrega¬dio me pudesse oferecer, até que a minha mão investigadora sentiu o obstáculo ceder e tentei retomar a subida empurrando a laje ou porta com a cabeça usando as duas mãos na temerária escalada. Acima, não havia nenhuma luz visível e, quando minhas mãos avançaram mais um pouco, percebi que ainda não fora daquela vez o desfecho de minha escalada, pois a laje era o alçapão de uma passagem que conduzia a uma superfície plana de pedra cuja circunferência era maior do que a parte inferior da torre, com certeza o piso de alguma câmara de ob¬servação elevada e espaçosa.
Arrastei-me cuidadosamente pela passagem tentando impedir que a pesada laje caísse de novo no lugar, mas falhei nessa última tentativa. Caído exausto sobre o chão de pedra, ouvi as reverberações lúgubres de sua queda, mas achei que, quando fosse necessário, poderia erguê-la de novo.
Acreditando ter chegado a uma altura prodigiosa, muito acima das malditas árvores da floresta, levantei-me do chão com dificuldade e sai tateando à procura de janelas por onde pudesse olhar, pela primeira vez, o céu, a Lua e as estrelas sobre os quais havia lido. Mas em todos os lados a tentativa foi baldada.
Tudo que encontrei foram enormes prateleiras de mármore sustendo caixas oblongas e repulsivas cujo tamanho me inquietou. Mais e mais eu refletia e tentava imaginar que segredos veneráveis poderiam abrigar-se nessa câmara elevada, isolada por tantos séculos do castelo abaixo. Então, de repente, minhas mãos deram com uma passagem bloqueada por um portal de pedra decorado com curiosos entalhes cinzelados.
Experimentando-a, percebi que estava trancada, mas com um esforço supremo superei todos os obstáculos e forcei-a para dentro. Ao fazê-lo, fui tomado pelo mais puro êxtase que já conhecera, pois, brilhando mansamente através de uma grade de ferro trabalhado e um curto lance de degraus de pedra des¬cendente, lá estava a Lua, cheia e radiante, que eu jamais vira, exceto em sonhos e em nebulosas visões que nem sequer ousaria chamar de lembranças.
Imaginando ter chegado o topo do castelo, comecei a subir às pressas os poucos degraus além da porta, mas uma nuvem encobriu de repente a Lua, fazendo-me tropeçar e prosseguir com maior vagar na escuridão. Ainda estava muito escuro quando atingi a grade — que experimentei com cuidado e descobri que estava destrancada, mas que não abri temendo cair da altura espantosa a que havia chegado. E a Lua então ressurgiu.
O mais infernal de todos os choques é aquele causado pelo inesperado abismai e o inacreditável grotesco. Nada do que eu sofrerá poderia comparar-se ao horror que agora presenciava, com as aberrações maravilhosas que aquela visão provocava. A visão, em si, era ao mesmo tempo banal e estarrecedora, pois se tratava do seguinte: em vez de uma perspectiva estonteante de copas de árvores vistas de uma altura imponente, estendia-se ao meu redor além da grade nada menos que o terreno sólido, ornamentado e dividido por placas e colunas de mármore e dominado por uma antiga igreja de pedra cujo cone em ruínas reluzia pálido ao luar.
Sem me dar conta de meus atos, abri a grade e saí cambaleando para fora, pelo caminho de cascalho branco que se estendia para longe em duas direções. Minha mente, por atônita e caótica que estivesse, conservava a obstinada avidez pela luz e nem mesmo o prodígio fabuloso que acontecera poderia conter meu ímpeto. Eu não sabia, nem me importava em saber, se a minha experiência era fruto de insânia, sonho ou magia, determinado como estava a fitar o esplendor e a alegria a qualquer custo.
Eu não sabia quem eu era, ou o que era, ou em que consistia tudo aquilo ao meu redor, mas, enquanto avançava aos tropeções, fui tomando consciência de uma recordação latente e alarmante que, de certa forma, cadenciou os meus passos. Passei por baixo de um arco daquela região forrada de lajes e colunas e errei pelo campo aberto, seguindo às vezes pela estrada visível, outras a abandonando e caminhando pelos prados onde ruínas esparsas sugeriam a presença antiga de uma estrada abandonada.
Em certa altura, cruzei a nado um rio caudaloso onde ruínas de alvenaria cobertas de musgo sugeriam uma ponte havia muito desaparecida. Duas horas devem ter transcorrido até eu alcançar o que parecia ser o meu destino, um venerável castelo coberto de hera no meio de um parque arborizado, de maneira curiosa familiar, mas que ainda assim me causou uma intrigante perplexidade. Notei que o fosso estava cheio e que algumas daquelas torres bastante conhecidas estavam em ruínas, e que havia novas alas para confundir o observador. Mas o que observei com especial interesse e satisfação foram as janelas abertas — profusamente iluminadas e deixando escapar os sons da mais alegre das orgias.
Aproximando-me de uma delas, olhei para dentro e vi um grupo de pessoas em trajes bizarros divertindo-se e conversando com animação. Ao que me parecia, eu jamais tinha ouvido uma fala humana e só poderia supor vagamente o que estavam dizendo. Algumas feições me sugeriram recordações muito remotas, outras me eram por completo estranhas.
Saltei então pela janela baixa para dentro do salão resplendente, saindo assim do meu único momento luminoso de esperança para a mais negra comoção de desespero e percepção. O pesadelo caiu como um raio, pois, mal havia entrado, presenciei uma das mais terrificantes demonstrações que jamais imaginei.
Assim que cruzei o peitoril, o grupo todo caiu num estado de terror súbito e inesperado de tremenda intensidade, que fazia os rostos contraírem-se e provocava gritos apavorados em quase todas as gargantas. A debandada foi geral e, em meio ao clamor e o pânico, muitos perderam os sentidos e foram arrastados pelos enlouquecidos companheiros em fuga. Muitos taparam os olhos com as mãos, atirando-se numa correria cega e desajeitada para escapar, contornando móveis e chocando-se contra as paredes até conseguirem alcançar uma das muitas portas.
Os gritos eram apavorantes e, quando fiquei sozinho e atônito no salão brilhante escutando o apagar de seus ecos, estremeci imaginando o que poderia estar invisível à espreita, ao meu lado. A primeira vista, o salão me pareceu deserto, mas, quando caminhei na direção de uma das recâmaras, pensei ter vislumbrado ali uma presença — uma sugestão de movimento além da passagem em arco dourada que conduzia para um salão parecido com o primeiro.
Aproximando-me do arco, comecei a perceber melhor aquela presença e, então, com o primeiro e último som que jamais proferi — um uivo pavoroso que me causou quase tanta repugnância quanto a coisa medonha que o causara —, enxerguei, com plena e apavorante nitidez, a inconcebível, indescritível e indizível monstruosidade que, com seu mero surgimento, havia transformado um grupo alegre numa horda de fugitivos delirantes.
Não posso sequer sugerir com o que ela parecia-se, pois era uma combinação de tudo que é impuro, repugnante, repudiado, anormal e odioso. Era a sombra espectral de decadência, antigüidade e dissolução, o pútrido, gotejante espectro de uma revelação doentia, o horrível desnudamento daquilo que aterra misericordiosa deveria para sempre ocultar. Deus sabe que aquilo não era deste mundo — ou não era mais deste mundo —, mas, para meu horror, eu percebi em seu perfil carcomido, com os ossos à mostra, uma abominável caricatura da forma humana e, em suas roupas mofadas e em frangalhos, uma qualidade indizível que me arrepiou ainda mais.
Aquilo quase me paralisou, mas não foi o bastante para eu não esboçar uma débil tentativa de fuga, um salto para trás que não conseguiu quebrar o encanto com que o monstro inominável e silencioso me prendia. Meus olhos, enfeitiçados pelos globos oculares vidrados que os fitavam de maneira asquerosa, não queriam fechar-se, embora uma piedosa turvação só me permitisse ver o terrível objeto de maneira indistinta depois do primeiro impacto.
Tentei erguer a mão e tapar os olhos, mas tinha os nervos tão abalados, que o braço não obedeceu à minha vontade. A tentativa, porém, foi quanto bastou para me perturbar o equilíbrio, e precisei dar vários passos cambaleantes para a frente para não cair. Ao fazê-lo, tive uma súbita e dolorosa consciência da proximidade da coisa sepulcral, meio que imaginei ouvir a sua respiração cava e repulsiva. Quase enlouquecido, consegui mesmo assim estender a mão para espantar a fétida aparição que estava tão perto, quando, num segundo cataclísmico de um pesadelo cósmico e um acidente infernal, meus dedos tocaram a mão putrefata do monstro estendida por baixo do arco dourado.
Eu não gritei, mas todos os fantasmas demoníacos que cavalgam o vento noturno uivaram por mim quando, naquele mesmo instante, desabou sobre a minha mente uma única e fugaz avalanche de uma lembrança de aniquilar a alma. Eu percebi naquele instante tudo que havia acontecido; minhas recordações foram além do assustador castelo e das árvores, e reconheci o edifício modificado onde eu estava agora; reconheci, mais terrível de tudo, a ímpia abominação que eu tinha à minha frente enquanto afastava meus dedos imundos dos seus.
Mas, no cosmo, há sofrimento e há bálsamo. E esse bálsamo é nepente. No supremo terror daquele instante, esqueci-me do que me havia horrorizado e o surto de negra recordação desfez-se num pandemônio de imagens reverberantes. Fugi num sonho daquele edifício assombrado e maldito e célere corri, em silêncio, sob o luar.
Retornando ao cemitério de mármore, desci os degraus e descobri que não conseguiria mover o alçapão de pedra, mas isto não me aborreceu, porque eu detestava aquele castelo antigo e aquelas árvores. Agora eu cavalgo com os fantasmas amáveis e zombeteiros ao vento noturno e brinco durante o dia entre as catacumbas de Nephren-Ka no vale oculto e proibido de Hadoth, à margem do Nilo. Sei que aquela luz não é para mim, exceto a da Lua sobre as sepulturas de pedra do Neb, bem como nenhuma alegria, salvo as indescritíveis orgias de Nitokris sob a Grande Pirâmide, mas, em minha nova selvageria e liberdade, eu quase agradeço a amargura da alienação.
Pois, embora tenha-me acalmado, sempre saberei que sou um intruso, um estranho neste século e entre os que ainda são homens. Isto eu soube desde que estendi meus dedos para a abominação no interior da enorme moldura dourada, estendi meus dedos e toquei uma superfície fria e sólida de vidro polido.
por H. P. Lovecraft
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