Thomas Cavendish |
Naquele dia de Natal do ano da graça de 1591 três navios
de velas desfraldadas ao sopro regular da brisa marinha entraram no
porto de Santos. Os moradores da vila fundada por Braz Cubas enchiam as
igrejas, ouvindo as missas e sermões da grande festa cristã.
De repente o estrondo da artilharia os encheu de espanto e os lançou em
confusão nas ruas. Ao mesmo tempo as embarcações miúdas daquela frota
despejavam na praia bandos de homens armados de mosquetes e piques, que,
soltando gritos espantosos, foram matando quem esboçava resistência,
invadindo casas, as saqueando, se apoderando, também, da casa da câmara e
ocupando as posições convenientes pra dominar a povoação.
Eram, na maioria, ruivos, de olhos azuis, grandalhões e barbudos. E um
clamor correu de boca a boca em toda a população espavorida.
— Os piratas ingleses!
Pertenciam os três barcos à esquadra do famoso ladrão-do-mar Thomas Cavendish: O Roebuck de capitão Cocke, o Desire (Desejo) de capitão John Davies e o Black Pinesse de capitão Stafford. Tendo os mandado na frente, Cavendish ficara de atalaia na ilha de São Sebastião com dois navios: O Leicester de capitão Southwell e o Daintie de
capitão Barker. Quando entrou no porto, dias depois, as tripulações dos
primeiros estavam de posse da vila e nela se haviam convenientemente
fortificado.
Nesse bruxulear do século 16 os piratas ingleses não davam descanso às
feitorias e estabelecimentos lusos da extensa e parcamente defendida
costa brasileira. Eram pequenos e disseminados no vasto litoral os
núcleos populacionais. A Bahia tinha 24 mil habitantes, Pernambuco 20
mil e havia umas 13 mil almas espalhadas em Itamaracá, Ilhéus, Porto
Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente e Santos.
Esta última vila repelira, em 1581, o ataque do pirata John Whitall com o Minion.
Em 1583 fora saqueada por Edward Fenton, que a esquadra espanhola de
dom Diogo Flores Valdez, em caminho a Buenos Aires, derrotou e pôs em
fuga. Em 1587 Roberto Witrington, com dois navios seus e um do holandês
Duarte Esquert, atacara a Bahia, felizmente sem êxito. Em 1595 James
Lancaster, associado a Verner, levaria sete navios contra Recife, sendo
expulso no fim dum mês de permanência em terra.
Thomas Cavendish era natural de Trimby, Grã-Bretanha, e recebera patente
de corsário da rainha Elizabeth, inimiga figadal do império espanhol,
sob cujo domínio se encontravam Portugal e o Brasil, quando atacou
Santos. Sua profissão de pirata não empanou seu talento de grande
navegador. As observações que fez e anotou, nas longas travessias, sobre
as marés, as correntes marinhas e o regime eólico no Atlântico, no
Pacífico e no Índico enriqueceram consideravelmente o conhecimento
náutico de seu tempo.
Saindo da Inglaterra em 1586, pilhou e devastou as colônias espanholas
do grande oceano, subindo até a costa da Califórnia e dali rumando às
ilhas de Sonda e o cabo da Boa Esperança. Regressou a seu país,
carregado de botim, em 1588. Dois anos mais tarde se fez ao mar com
destino à costa do Brasil, à frente da esquadra, com que, de surpresa,
se apoderou da vila de Santos.
Permaneceu nela cerca de dois meses, tiranizando a população, roubando o
que podia, depredando e queimando os engenhos do arredor. Depois
navegou ao sul, levando os porões atestados de riqueza. Mas parece que o
fato de haver atacado a indefesa povoação brasileira naquele dia
santificado do Natal de 1591 trouxe pra ele e seus principais capitães
uma verdadeira maldição.
É verdade que, pra Cavendish, o assalto não fora cometido no Natal, que
os ingleses respeitam e celebram tradicionalmente, porque, em 1591, já
haviam os portugueses adotado o calendário da chamada reforma
gregoriana, enquanto na Inglaterra continuava a prevalecer o velho
calendário juliano. Assim, o Natal britânico se festejava no dia 25 de
dezembro do antigo sistema cronológico, que correspondia no novo,
segundo a correção determinada por papa Gregório, em 15 de dezembro.
Aliás os ingleses somente viriam a aceitar essa modificação tardiamente,
em 1752.
Em 1592 o pirata se apresentou, novamente, diante de Santos. Esperava
que a vila estivesse refeita da rapinagem anterior e vinha sequioso de
nova roubalheira. Mas dessa vez lhe saiu o ano bissexto, como diz o
povo, ou saiu o tiro pela culatra. A população estava alerta e preparada
prà luta. Aqueles sinos que repicaram festivamente no Natal do ano
anterior, convocando os moradores às cerimônias litúrgicas nas igrejas,
então tocaram a rebate, conclamando todos à resistência diante das velas
inglesas desfraldadas sobre o mar.
Os piratas ruivos, barbudos e ferozes desembarcaram. Porém foram
recebidos por nutrido fogo de pedreiros e mosquetaria, carregados a arma
branca, cercados e chacinados sem piedade. Santos tomava sua desforra
do Natal triste e sangrento que tivera. Os capitães Southwell, Barker e
Stafford morreram no combate e seus marujos e soldados fugiram a bordo,
completamente dizimados. Horas mais tarde as velas dos piratas
derrotados se apagaram no horizonte e os sinos badalaram no espaço os
festivos repiques do triunfo.
Thomas Cavendish entrou em grande fúria e resolveu se ressarcir daquele
revés noutros pontos do litoral brasileiro. Não poderia voltar à pátria
desonrado e desmoralizado por aquela terrível repulsa, ele que se
considerava invencível, um verdadeiro leão-do-mar. Pôs as proas sobre a
ilha de São Sebastião mas ali achou a população armada, que o repeliu,
também, com novas perdas. Outras perdas e outro revés o esperavam na
ilha Grande.
Desfalcado de seus melhores oficiais e aventureiros, com os barcos
precisando de refresco e conserto, velejou ao Espírito Santo e entrou na
baía de Vitória, ancorando diante de Vila Velha, ao pé do monte
íngreme, onde se eleva o pitoresco convento de Nossa Senhora da Penha.
A população entrouxara roupas e alfaias, tudo o que possuía, e se
refugiara no seio dos muros conventuais que, do cume do agreste penedo,
dominam toda a costa. Os piratas desembarcaram sem achar resistência,
porém se viram diante de casas vazias e não encontraram, no arredor,
recurso que pudesse minorar a situação. Diante deles Cavendish resolveu
atacar e se apoderar do mosteiro e forçar os habitantes da colônia a
fornecer mantimento e a pagar resgate.
Todavia pesava sobre ele a maldição do Natal, que violara com o sangue e
a rapinagem na vila de Santos. Ao chegar ao pequeno planalto que, do
lado do oceano, antecede ao convento, os moradores, armados e
organizados, o receberam com uma trabucada que derrubou muitos homens.
Os ingleses, enraivecidos, se lançaram a diante em furente investida a
arma branca.
Então, houve o milagre: Um cavaleiro armado desceu do céu, que se abriu,
mostrando, em resplandecente clarão, o vulto de nossa senhora da Penha
e, ajudando os defensores, lhes guiando a carga, acometeu os piratas,
lhes deu de rijo e insuflou a todos que o seguiam uma coragem sem
limite. Os britânicos recuaram e fugiram aos pendores do morro abaixo,
abandonando os mortos, os feridos e as próprias armas.
Lá embaixo, na praia de Vila Velha, diante da gruta, onde outrora vivera
o ermitão frei Pedro Palácios, tomaram os batéis e remaram
desatinadamente a seus navios. A frota levantou ferro, largou pano,
transpôs a barra e se fez na volta do mar. Enfraquecida por tanto revés,
após aquela sacrílega vitória de Santos, não podia mais tentar êxito no
Brasil e só lhe restava o recurso de regressar, tristemente, à
Grã-Bretanha.
Thomas Cavendish não veria mais sua terra natal. Desorientado, baldo de
recurso, minado de desgosto e esfalfado pela derrota, foi deperecendo a
cada singradura de seus barcos veleiros na travessia do Atlântico e
morreu miseravelmente, sendo seu corpo sepultado no mar.
A maldição daquele natal de sangue o perseguira sem trégua.
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.