segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O diabo e seus parentes

Sabendo-se (como se sabe) que o diabo não é um só, mas legiões (precisamente — segundo cálculo de antigos e conspícuos demonólogos: 1.758.064.176 capetas...) é natural que se julgue haver, entre tantos demônio, certas relações de parentesco, mais ou menos estreitas.

Tomando porém, o diabo ou um diabo só — também será natural supor tenha até pai e mãe, e — se casado — mulher e filhos. Pelo menos, o povo simples assim o entende, referindo até, em contos, provérbios e expressões usuais, esse parentesco danado.

Num livro interessante, escrito por autor argentino que esteve na Bélgica e lhe vasculhou o folcore, El diablo em Bélgica, de Roberto J. Payrú (Buenos Aires, 1953, p.18) — se divulga uma velha crendice daquele país, segundo a qual "cuando llueve y hace sol, al propio tiempo, para nosotros [os argentinos] 'se casa una vioja', mientras que en Bélgica, 'el diablo azota, a su mujer (o a su madre) y casa a su hija'. En el dicho valón:

S é l'oyal ki bat'si mor
é ki maréy si fèy"

O que significa, em vernáculo: É o diabo que bate na mãe e casa a filha.

Já aí temos, portanto, alguns parentes do diabo: a mãe, a mulher e a filha.

Conheço um provérbio português em que se encaixa também o diabo e sua mãe dele. Vejo-o transcrito num dos livros de Camilo, A corja (Lelo, Lisboa, 1943, p.81), no seguinte passo: "— Pois você que cuidava do barão? Quando eu lhe disser que a burra é preta, olhe-me para o cabelo. Eu não lhe dizia que entre o Macário e a Felícia, que viesse o diabo a escolhesse? Isto tudo é uma corja. Tão bom é o diabo como sua mãe..."

Cá no Brasil, também corre outro adágio alusivo à mãe do diabo. Deparo-o no livro de Guimarães Rosa, Corpo de baile (José Olympio, Rio de Janeiro, 1956, v.1, p.184), referindo-se a um lugar perigoso ou nos cafundós do juda: "O lugar era da mãe do demo".


Dessa mãe do diabo — o povo (que sabe coisas do arco da velha) conhece até o nome!

Ora veja o leitor incrédulo este pequeno conto popular português, que retiro da Revista Lusitana (v.22, Lisboa, 1919, p.125), do estudo que faz José Diogo Ribeiro, acerca do folclore da vila de Turquel (Portugal): "Por divertimento o diabo, uma vez, despediu uma frecha contra sua mãe, e indo-lhe logo no encalço, apanhou-a no ar. Mais tarde inventou ele as armas de fogo; e um dia, pegando, numa dessas armas, apontou à mãe, disparou, e correu no propósito de deter a bala. Mas esta, mais veloz, introduzira-se já no alvo, e era uma vez a 'Faísca-Velha'..."

Em nota a esta Faísca-Velha, diz o autor do estudo: "Segundo o povo, é esse o nome da mãe do Diabo, a qual figurava em tempo — dizem — num retábulo da igreja de Alcobaça".

Sabe-se na Bretanha, que a mãe do diabo era mulher duma força extraodinária, tendo construído, numa só noite, uma grande ponte de pedra sobre um rio. A pedreira, de onde ela tirou os blocos para a construção, ainda se denomina: as pedras da mãe do diabo". (Cfr. Le folklore de la Bretagne, de Paul-Yves Sébillot, Paris, 1950, p.137).

Nesse mesmo livro informativo, temos ciência da existência de mais um parente do diabo — sua avó, mulher tão forçuda como a filha (a Faísca-Velha), segundo a tradição da Bretanha, "elle déposa, dans la forêt de Quéneéan, d'enormes rechers apportés aussi dans son tablier" (id. ib.)

Vimos, acima, que o diabo tem mulher e filha. Naturalmente, presume-se deveria ter também sogra. De fato, teve ele uma sogra tão... sogra que não teve dúvida em passá-la de graça ao primeiro que se apresentou ou se ofereceu para comprá-la.

Vamos ao caso.

Na Espanha corre um provérbio, calcado (segundo se presume) numa pequena história. Quando alguém quer, com empenho, descartar-se de alguma coisa que o aborrece ou lhe é molesta, diz, usando expressão proverbial: "Cuanto por la mula queres? — Vuestra es".

Como se vê, antes mesmo que o interpelante ofereça qualquer dinheiro pela compra da mula, já o vendedor diz, num ímpeto, doido para desfazer-se dela: — Vuestra es.

Agora, o conto popular — referido pelo folclorista Francisco Rodrigues Marins, em seu livro 12.600 Refranes más (Madri, 1930, p.70): "Así cuentam vendió el diablo su suegra: enchándola a las barbas al primero que le preguntó cuánto queria por ella".

Avó, mãe, mulher, filha e sogra do diabo — são estes os parentes a que no refere o povo, além daquele rapaz que se casou com a filha dele — genro infeliz cujo nome a tradição não registrou.

Cinco mulheres e um homem — parentes do diabo.

Se o leitor conhece mais algum, diga...
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Fonte: Neves, Guilherme Santos. "O diabo e seus parentes". A Gazeta. Vitória, 09 de março de 1958.

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