segunda-feira, 23 de maio de 2011

A bruxa do Ribeirão

Quando a ilha de Florianópolis era Desterro, as bruxas costumavam visitar os cemitérios, especialmente no interior e somente à noite.
No século XIX a ilha se revela calma e tranquila. Ilha de Santa Catarina de Alexandria, que preferiu morrer a deixar de lado suas crenças e convicções. Mas, naqueles tempos de uma capital serena e bem provinciana, vez por outra, fatos estranhos costumavam acontecer, parecendo agora que a modernidade acabou com eles.
Manoel, de apelido Bieli, é um pescador do Ribeirão, comunidade açoriana da parte sul da ilha. Tira do mar o sustento, ajudando o pai na pesca dos peixes dadivosos da baía, engastada entre o continente e os morros ilhéus. Usa da tarrafa para trazer à terra saborosos camarões, como também auxilia a família na beira do mar, principalmente as mulheres, na faina trabalhosa da catar berbigões. Pecador solteiro, na juventude de seus vinte e cinco anos, gosta de usar os domingos para esquecer o mar e tentar algum namoro com as moças casadoiras da freguesia.

Numa tarde de domingueira conheceu Nina, morena clara, baixinha, longos cabelos anelados, bem feita de formas, pernas roliças e firmes escondidas dentro do vestido de chita, que melhor se delineavam cada vez que se sentava no banquinho da praça, em frente à igrejinha de estilo português. Uma pequena berruga na testa, julgava Bieli, fazia com que ela parecesse mais bonita e interessante, adereço ilhéu tão comum naquela gente açoriana. Ele, num sábado, quando a missa da boquinha da noite terminava, se declarou a ela na escadaria de pedras irregulares e largas, passadiço que levava os fiéis à reza na igrejinha simples.

Ela o olhou com candura e declarou o seu sim, o que fez o venturoso Bieli catar estrelas ao invés de berbigões. Apesar do firmamento carregado de nuvens escuras, ele relembra aquela noite com emoção e afirma que as estrelas e meteoros nunca se fizeram tão brilhantes, um imaginário luar de contornos prateados e suaves.

E voltou ele ao mar na segunda, com vontade redobrada de mais peixes tirar da baía, já pensando em viver com a amada num ranchinho próprio.

Na outra semana, numa sexta-feira, ele vai com o amigo Édi, assim chamado por ser muito trabalhoso falar Edeclésio, para a região de Naufragados, no extremo meridional da ilha, em busca de peixes maiores que aumentam também a renda suada.

No meio da pesca o vento nordeste começa de mansinho, paa em seguida aumentar e não lhes permitir a volta. A frágil embarcação, movida a remo e verga de bambu, não conseguiria retornar ao ninho. Eles evitam a briga com o mar e se deixam levar à terra no sentido inverso, aportando bem perto da saída das águas para o mar do oceano. Estão em Naufragados, região erma e desabitada, de muitas histórias de tormentas e naufrágios.

Escondem a canoa e procuram abrigo. Por sorte, levaram pão e água, que faz enganar a fome. Os peixes eram poucos e a noite começava com um negrume maior que o normal. Eles se acomodam num canto de mato, pensando em ali passar a noite e voltar no outro dia costeando as margens da ilha, se o vento nordeste não arrefecer.

De repente. o Édi aponta na direção do sopé do morro. Vira ao longe uma luzinha bruxuleante que acendia e apagava. Bieli também divisa o estranho e fugidio vaga-lume, formado pelos açoites do vento na galharia. Resolvem se dirigir para lá. Talvez consigam uma refeição um pouco melhor, um calor de fogo que lhes retempere o ânimo. Perdem muito tempo andando, pois a escuridão é quase total.

Em determinado momento da caminhada começam a ouvir um canto. Um refrão repetitivo de vozes estridentes e femininas, palavras ininteligíveis e gargalhadas, talvez uma outra língua. Eles seguem adiante, já com certo medo. O clarão de fogo começa a aumemtar e melhor se delineia no escuro de uma noite sem lua e sem estrela.

E, como por encanto, abre-se uma clareira e eles, mudos, petrificados, amparados pelo negrume da noite, veem à sua frente um espetáculo dantesco. Na clareira, iluminada por uma grande fogueira no centro, estão a dançar umas vinte, talvez trinta mulheres encarquilhadas e horríveis. Vestem longas túnicas negras, grossas sobrancelhas e rostos angulados, narizes pontudos.

Apertam vassouras de mato nas mãos nodosas e de longas unhas, algumas de chapéu cônico, outras de coques que quase escondem o cabelo cor de galho seco, acinzentado. O vento nordeste sibila insistente, mas nada se remexe na clareira. Parece que ali o vento não entra.

Executam elas uma dança tétrica em torno do fogo. A roda que formam ora segue para um lado, ora para o outro. Ao lado do fogo, numa pedra lisa que mais parece uma mesa, com um tipo rústico de toalha feita com pequenos pedaços quadrados de tecidos das mais diversas cores, estão alguns objetos em metal e pedra, amuletos sinistros, dentre os quais se destacam um enorme novelo de corda e a estatueta de um abutre querendo alçar voo. Comentários havia em toda a ilha faceira a respeito desses horrores. Agora, porém, os dois pescadores adquirem a certeza de que naquele lugar de pesadelo há uma reunião de bruxas, talvez um sabá que tenha até a presença do Tibinga, o capeta ilhéu.

E elas continuam cantando sem cessar a estranha melodia, antes bem fraca e agora ensurdecedora, pontilhada de gritos e risadas macabras. Um caldeirão a exalar vapor ou fumaça assoma em seu aço de um negro brilhante, que uma delas remexe metodicamente. Pegam elas canecas de barro e provam do estranho preparado, que parece fazer com que voltem à roda com mais vontade e fervor, continuando o canto sibilante e histérico. Eles permanecem na treva, olhos arregalados, mudos e paralisados de pavor.

De repente uma delas pára o canto esganiçado, sai da roda, volta-se para eles e lhes aponta o longo dedo indicador. O ohar que despeja é terrível. Parece penetrá-los, possui-los, fazendo com que permaneçam quais estátuas de pedra e medo ante a terrífica medusa. Ela ri uma risada horrenda, o olhar penetrante lhes atravessa a alma. As outras, ao notar que a companheira parara, param também e se voltam na mesma direção. E os dois homens, apavorados, têm a fitá-los não um daqueles olhares terríveis, mas todos os olhares macabros do mundo.

Elas param a dança, as feições maléficas na direção da sombra, uma risada em coro que finalmente tem o condão de lhes despertar do torpor. Bieli e o amigo voltam a si e disparam em desabalada carreira na direção do mar, pois nas histórias de roda de fogo tinham ouvido dizer que as bruxas detestavam água.

Elas não os seguem e retornam ao canto, mas, para eles, todas as bruxas da terra estão ali atrás. Ao chegar à praia, fazem retornar a canoa à baía com todo desespero que as forças permitem. Arquejantes, lançam-se ao mar e passam uma noite diabólica, brigando com o vento e as ondas.

É de manhã quando aportam na freguesia. E contam para todos a aventura da véspera, sendo recebidos com o riso de muitos e a dúvida de poucos.

No domingo, Bieli encontra a sua Nina e lhe conta o ocorrido. Ela o ouve de olhos baixos, tranquila. Quando ele termina, estranha a placidez da amada.

Neste momento, ela levanta os olhos para ele e Bieli tem um frêmito de pavor. E sabe, com aterradora certeza, que já vira antes o olhar da namorada, o mesmo olhar da bruxa que primeiro descobrira os dois intrusos.

Desta vez não foge, pois sabe que não adiantaria. Já está inexoravelmente dominado. Ela pega a mão gelada do pescador e eles começam a passear em torno da praça.

Nina irá conduzi-lo pelo resto da vida.
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Da Série "Recordações Açorianas X".

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