Nos sertões da Bahia, principalmente em Juazeiro, as cerimônias
religiosas da Quaresma e Semana Santa não se restringem aos atos
litúrgicos, celebrados nas igrejas pelos vigários da área. Entre os
habitantes da zona rural, mantém-se viva uma manifestação do maior
envolvimento místo: as cerimônias de alimentação das almas, uma maneira
muito própria de rezar pelos seus mortos.
São quinze mulheres, em média. Algumas ainda crianças, não passam dos
dez ou vinte anos. Cobertas por um lençol branco caminham lentamente
pela caatinga, para o cemitério de Rodeadouro, um lugarejo no sertão
sanfranciscano, próximo a Juazeiro. De longe, ouve-se um canto meloso,
triste, lembrando o cantochão.
Esse espetáculo, raramente presenciado por pessoas estranhas, repete-se
às quintas e sextas-feiras da Quaresma, no interior da Bahia. Ao lado de
um outro, onde o misticismo do povo do interior atinge ao grotesco,
quando homens se flagelam com chicotes de couro com pontas de metal, a
“alimentação das almas”, é uma manifestação religiosa em extinção, mas
que resiste desde o fim do século passado, em regiões da Chapada
Diamantina, Monte Santo (no norte do estado) e nas margens do São
Francisco.
À meia-noite, as “alimentadeiras” saem da capela de Rodeadouro para o
cemitério, quatro quilômetros adiante, no meio da caatinga. As que
seguem à frente do “cordão” conduzem velas acesas. No “cordão” apenas um
homem: um rapaz que leva o “madeiro” — cruz feita de jatobá, de dois
metros de altura. Na metade do caminho, a visão fantasmagórica,
movendo-se lentamente em meio à escuridão, estanca. Uma voz estridente
inicia uma ladainha ou um salmo. É o cântico iniciador da encomendação,
ou alimentação, das almas.
A cerimônia lembra a via sacra. Divide-se, também, em estações. É o
ruído da matraca — uma tábua de madeira com uma argola de arame grosso
em cada lado, que produz um som seco quando agitada repentinamente —
comanda um movimento brusco de genuflexão. A alimentadeira mais velha,
dona do cordão entoa uma lauda. O coro responde rezando um padre nosso.
Mais três laudas seguidas da oração, logo após todos cantam o senhor
Deus. É a primeira estação.
Mais quarenta minutos de caminhada, a segunda estação é rezada e
cantada, em cima de uns lagedões. A terceira estação já é no cemitério.
Um cercado de 400 metros quadrados, com uma cruz caiada no centro. Já
são duas horas da manhã, quando termina a última oração pela alma de
diversas pessoas, antepassados, que foram enterrados ali. A procissão de
retorno não é mais feita sob o comando da matraca, mas é acompanhada de
cânticos lúgubres.
A alimentação das almas é uma manifestação religiosa que se repete
nessas regiões, onde o envolvimento místico das populações chega, às
vezes, a ser severamente combatido pelos párocos das freguesias mais
próximas. Por isso, o cordão é fechado, não permitindo a participação de
todo mundo. A dona do cordão recebe a incumbência da própria mãe,
depois de preparada através dos anos. Essa herança perdura a cada
geração. É a maneira própria de rezar pelas almas dos parentes e amigos,
que a cada ano se realiza na Quaresma. Na Sexta-feira da Paixão, a
cerimônia requer um toque de solenidade: todas as indumentárias e os
lençóis que encobrem as alimentadeiras são utilizados especialmente para
a ocasião.
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Fonte: Site Jangada Brasil in: "Alimentação das alma - Viver Bahia - Salvador, março de 1976".
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