O diabo é o herói de mil tropelias no sertão. Aparece com o aspecto tradicional que lhe deu o catolicismo: chifres, olhos de fogo e pés de pato ou de bode. Também pode surgir como um grande cachorro, um bode, um gato ou um porco negro. Tem muitos apelidos, porque não se deve nunca dizer seu verdadeiro nome, a fim de o não atrair: Cão, Debo, Moleque, Fute, Pé-de-pato, Futrico, Figura, Bode Preto, Porco-Sujo, Sujo, Capa-Verde, Capinha, Gato Preto, Malmo, Sapucaio, Pedro Botelho, Bicho Preto, Rapaz, Tinhoso, Capiroto, Droga, Capeta, Coxo, Maioral, Ele.
Geralmente, o demônio sertanejo, como o de todos os povos, é criado à sua imagem e semelhança. Anda, por isso, encourado como os vaqueiros, monta a cavalo, é especialista em velhacadas de cigano e alquilador, gosta de cachaça, come picadinho de bode com gerimum, dança nos sambas, campeia o gado, faz a corte às moças, e desaparece sempre com um estouro e um fedor terrível de enxofre ou de chifre queimado. Às vezes, se apresenta como um cantor de desafio a quem ninguém vence. De outras, se encarna no couro dos cantadores célebres, ou faz pactos com eles, tornando-os invencíveis. O cantador Manuel do O Bernardo, não podendo vencer num desafio célebre seu rival Rio-Preto, gritou no meio da sala onde se achavam, rodeados de muita gente:
Senhora dona da casa,
Abra a porta, acenda a luz:
Estamos c’o Cão em casa,
Rezemos o credo em cruz!
Outro famoso cantador, Manuel das Cabeceiras, afirmava ter cantado desafio uma vez com o demônio em figura de moleque.
Corre pelo sertão uma versalhada sobre a disputa do diabo com São Miguel a propósito da alma de certo ricaço inimigo dos pobres, que estava sendo julgada no outro mundo. Quando o arcanjo começou a pesar as boas e más obras do morto na sua balança, este pediu a intercessão em seu favor de Nossa Senhora, da qual fora sempre devoto. Satanás esperava com prazer apoderar-se da alma do infeliz. Nossa Senhora, porém, movida da piedade de seu amantíssimo coração, conseguiu salvá-la. Ao avistá-lo, o Fute falou assim:
Lá vem a compadecida!
Mulher com tudo se importa!
Todos fazem seus negócios,
Mas a mim fecham a porta.
No fim de todas as coisas,
Eu é que levo a taboca!
Não foi possível obter os outros versos do poemeto sobre esse milagre da Virgem Mãe.
O suplício mais terrível que existe no inferno para aqueles que cometem impurezas nesta vida é, no dizer dos matutos, o chamado da cama do compadre com a comadre. A decência não permite se faça sua descrição. Para mostrar quanto é terrível, basta a seguinte lenda sertaneja:
Um dia, o diabo coxo revoltou-se contra o maioral do inferno e pintou o sete lá dentro. Quebrou os móveis e deu pancada a torto e a direito. Todos os demônios o cercaram armados de espetos em brasa. Continuou a lutar. O maioral ameaçou-o se não se rendesse, de passá-lo pelas moendas onde se supliciam as almas mais pecadoras. Soltou uma gargalhada. Ameaçou-o com a grande caldeira de azeite fervente. Tornou a zombar. Ameaçou-o com a cama do. compadre com a comadre. O diabo coxo empalideceu, pôs-se a tremer e entregou-se, pedindo perdão.
Na opinião sertaneja, o demônio tem horror aos meninos, porque já o fizeram perder duas vasas. A primeira, numa igreja. Todo vestido de preto, debo estava tomando nota de quem se portava mal durante a missa, quando um menino puxou a saia da mãe.
- Que é isso, menino? disse ela.
- Mamãe, olhe ali aquele homem! Ele tem os pés de pato!
A mulher voltou-se, viu e fez o sinal da cruz. O bicho estourou, fedendo.
A segunda foi numa festa. O diabo, que andava apaixonado por uma moça muito bonita, compareceu a um baile em casa do pai dela, bem vestido e bonito, mas sem poder esconder os pés de pato. Quando mais aceso ia o seu namoro, um menino gritou no meio da sala:
- Aquele homem tem os pés de pato!
Houve grande reboliço. A moça fez o sinal da cruz. Ouviu-se logo o estouro e sentiu-se a fedentina de chifre queimado.
No sertão, o diabo faz pactos ou pautas, como dizem os nordestinos, com indivíduos que o logram a maior parte das vezes. Para mútua segurança nesses contratos, quase sempre realizados alta noite, numa encruzilhada deserta, o homem deve dar ao Maligno em caução alguma gotas de seu sangue.
Conta-se que um fazendeiro fez com o Capeta o seguinte acordo: Este faria tudo quanto aquele mandasse e somente o poderia levar para o inferno, quando tivesse esgotado suas ordens. É quase a condição imposta pelo demônio aos desejos do doutor, no Segundo Fausto de Goethe.
O homem fez o que bem quis com o auxílio do diabo até que um dia já não sabia mais o que ordenar. Ia ser carregado para o inferno, quando lhe ocorreu um ardil salvador: mandou o Tinhoso encher um cesto de água e ele, desesperado, estourou e foi-se.
Tendo morrido numa cidade sertaneja um homem, cuja riqueza era de origem duvidosa, verificou-se que a tinha obtido com um pacto infernal, pois que, no dia do enterro, quando todos os parentes e amigos enchiam a casa do defunto vestidos de preto, nela entrou um vaqueiro alto e moreno, todo encourado, que, sem tirar da cabeça, com escândalo dos presentes, o seu chapeu de couro, deu em silêncio algumas voltas em torno do esquife e foi embora. Quando se abriu o caixão, antes de ser levado para o cemitério, a fim da viúva se despedir de seu marido, verificou-se que estava vazio. O demônio levara o morto em corpo e alma!
Conta, afinal, o sertanejo que o diabo é casado e tem uma filha muito bonita. Por ela se apaixonou um rapaz de grande virtude e valor. Seu anjo da guarda não conseguiu afastá-lo de tão perigosa paixão. A moça não foi indiferente a esse amor, mandou-lhe recados carinhosos, e até falou ao pai em abandonar o inferno e ir morar na fazenda do namorado. O diabo enraiveceu-se com esses desejos e, para evitar que os realizasse, trancafiou-a a sete chaves numa torre de ferro, ao meio de seu reino.
Ao saber disso, o rapaz montou no seu cavalo de campo castanho escuro, fechado ou, melhor, cacete, sem sinal descoberto nem encoberto de espécie alguma, o animal de maior fama da ribeira, e dirigiu-se ao inferno, decidido a tudo. Chegou lá na hora em que os diabos dormiam, abriu as portas da torre com chaves falsas, pôs a moça na garupa e fugiu a todo galope.
Quando acordou e soube, pela mulher, do audacioso rapto, o diabo teve violentíssimo acesso de fúria. Depois, mandou selar um de seus melhores cavalos e lançou-se em perseguição dos fugitivos. A moça, que ia sentada à garupa do namorado e podia voltar-se para trás, avistou ao longe o vulto do pai. Preveniu-o e ele esporeou a cavalgadura, perguntando:
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num gáseo.
Ele respondeu, rindo:
- Cavalo gáseo-sarará não presta nem prestará.
As rimas dos rifões sobre os pêlos dos cavalos são simples meios mnemônicos para não esquecê-los. O cavalo gáseo-sarará é o albino, o ruço ou branco de pele rósea. Chama-se comumente só gáseo. Sarará se diz do indivíduo rusalgar. A combinação dos dois termos dá mais força à idéia da cor do animal.
Sentindo escapar-lhe a cobiçada presa, o demônio muda de cavalo e a moça previne ao rapaz, que indaga:
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num alazão.
- Trazes o freio na mão, onde deixaste teu alazão?
Seguem-se contínuas mudanças, sempre acompanhadas da pergunta - em que cavalo vem teu pai? - e de respostas que indicam as qualidades ou defeitos atribuídos às cores dos animais.
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num bebe-em-branco.
- Quem monta em bebe-em-branco, monta em cavalo manco.
O bebe-em-branco é o cavalo escuro de narinas e queixo brancos.
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num cardão rodado.
- Cavalo cardão rodado melhor andando que parado...
O cardão rodado é o tordilho escuro com manchas apatacadas que o francês chama grís pommelé.
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num cardão pedrez.
- Cavalo cardão pedrez para carga Deus o fez.
O cardão pedrez é o tordilho pintadinho.
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num ruço-pombo.
- Cavalo ruço-pombo traz pisadura no lombo.
- Em que cavalo vem teu pai?
- Num melado-caxito.
- Cavalo melado-caxito tanto é bom como é bonito.
O melado-caxito é o baio dourado de crinas e canos pretos.
A excelência do animal não adiantava mais nada ao demônio, porque os dois amantes chegavam à face da terra e se refugiavam numa igreja, onde casaram. O diabo voltou ao seu reino, aborrecido e fatigado. Ao entrar em casa, sua mulher indagou:
- Alcançou-os?
- Não. Foi impossível!
- Por que?
- Porque montavam um cavalo castanho escuro que pisa no mole e no duro, e leva o dono seguro.
O sertanejo aproveita essa lenda dum Orfeu bárbaro para enumerar seus conceitos sobre as cores dos cavalos, desmentindo o velho aforismo dos maquignons de França; à tout poil bonne bête. Mas, em todos os pêlos, mesmo nos mais desacreditados, há exceções. Essa a verdade.
De todas as lendas sobre o diabo que correm pelos sertões do Nordeste brasileiro parece que esta é a mais peculiar, a mais característica.
___________________________________________________________________________
Gustavo Barroso (Gustavo Dodt Barroso), historiador e folclorista, nasceu em Fortaleza, CE, em 29/12/1888, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 3/12/1959. Publicou, entre outras obras, Terra de sol, Rio de Janeiro, 1912; Heróis e bandidos, Rio de Janeiro, 1917; Casa de marimbondos, São Paulo, 1921; Ao som da viola, Rio de Janeiro, 1921 (2 ed. aumentada, Rio de Janeiro, 1949); O sertão e o mundo, Rio de Janeiro, 1923; Através dos folclores, São Paulo, 1927; Almas de lama e de aço, São Paulo, 1930; Mythes, contes et légendes des indiens, Paris, 1930; Aquém da Atlântida, São Paulo, 1931; As colunas do templo, Rio de Janeiro, 1932.
Fonte: Jangada Brasil - (Barroso, Gustavo.
Ao som da viola, p.574-579)