domingo, 15 de abril de 2012

O diabo no folclore do Nordeste

O número de agosto de Brasil Açucareiro foi uma edição quase exclusivamente sobre o folclore do nordeste. Daí a oportunidade de relembrarmos velhas lendas sobre o diabo, ao tempo em que muito se acreditava nas artimanhas do maligno.

São totalmente esquecidas, pois remontam ao tempo do Recife de fora de portas, expressão tão velha e quase desconhecida que preciso explicar aos que não encontram o seu sentido imediato. Relembra ela o tempo das portas nas cidades e das populações que viviam fora delas.

Ou seja: aquilo mesmo que ainda acontece hoje, sem a existência das portas, com as classes mais bem afortunadas morando no centro da cidade e as mais desafortunadas, na periferia, no sertão ou outro nome qualquer que lhe queiram dar.

Nesta primeira lenda sobre o diabo em Pernambuco, ou melhor, no Recife, relato apenas o que ouvi na minha infância, época de vida farta e fácil, em que havia tempo para se cuidar muito da moral e da religião. Era o diabo empregado para efeitos moralistas, às vezes até mesmo sob fórmulas grosseiras. Nesta lenda simplificada, o veremos assim.

 A irmã do padre

Certo padre, recentemente formado, lutou e conseguiu sua nomeação para uma paróquia distante. Tendo como família apenas uma irmã solteira, esta se exasperou tanto com a possível mudança para o longínquo interior do estado que, às vésperas da viagem para a nova residência, foi ao auge da blasfêmia, exclamando: - Eu não vou para o mato e me caso até com o diabo, se ele aparecer esta noite!

Foi para a varanda do prédio onde morava e lá se deixou ficar. Precisamente à hora fatídica dessas coisas, a meia-noite, avistou ela, no princípio da rua, um elegante cavaleiro montado no seu ginete, cujos cascos riscavam fogo nas pedras do calçamento. Ao chegar à sua porta parou, olhou-a bem, desceu do cavalo, subiu as escadas e bateu à porta.

A irmã do padre correu para recebê-lo, vendo no fato a esperança de um casamento que não mais permitiria sua viagem para o interior do estado.

Ao abrir a porta, porém, e fitar o cavaleiro, viu nele os olhos de fogo de Satã e caiu morta.

Vê-se nesta lenda além do moralismo contra as blasfêmias, o Recife da época dos cavalos e dos cavaleiros, e onde os automóveis não eram nem sequer sonhados.

 A marca no braço

Tanto como a primeira esta outra estória remonta também à época de fora de portas. O cenário é que muda: não é mais o diabo montado no seu ginete faiscante. Lembra a época em que não havia estradas de ferro em Pernambuco. É um diabo marítimo, do tempo do apogeu das barcaças e de um Recife praieiro. É um diabo que apavora, que castiga, que rapta crianças, um precursor dos gangsters americanos, para desespero e contenção de mães que blasfemam e sobretudo de um fundo moralista e religioso.

Certa mãe impaciente pelas traquinadas do filho vai ao desespero e exclama: - Tornara que o diabo te carregue!

Dito isto vai à cozinha e ao voltar à sala nota o desaparecimento da criança. Procura pela casa toda e dá o desespero sem achar explicação para o caso.

No outro dia, porém, na hora da chegada das barcaças à rampa do cais, velhos barcaceiros que voltavam de alto mar ao passarem por determinado local ouviram choro de criança e avistaram entre pedras altas o menino desaparecido, apresentando ainda nos braços a marca terrível das unhas do diabo que o havia carregado como blasfemara a mãe ignorante de tal perigo.

Credo

Vindo da mesma época que as anteriores, não há nesta estória nenhum fundo moralista, apenas uma demonstração de força da palavra Credo, ou seja do Creio em Deus Padre, etc. Nota-se, porém, um afeito geográfico da época das ronceiras embarcações à vela, em que Maçaió ficava tão distante do Recife que se podia envolvê-la nas lendas.

Em casa de certa família que não primava por bons costumes, improvisaram um baile. E veio a frase do dono da casa: Hoje até o diabo dança aqui!

Altas horas da noite foi reparado que um crioulão alto não perdia um número e já dançava com certa dama há tanto tempo, que esta, não suportando mais o cansaço, indagou:

- O senhor não vai parar? Será que estou dançando com o diabo? Credo!!

A essa palavra a mulher sentiu-se só na sala, sem saber como o crioulo desaparecera. Cai, de espanto, ao tempo que todos sentem um cheiro forte de enxofre.

II

Agora, não mais a lenda, mas a realidade. E o Recife das velhas carroças puxadas a boi, levando açúcar turbina e mascavado da estação de São Francisco para os armazéns da rua do Brum. É o Recife em que a chegada do trem das 5 horas da tarde era uma festa para mim. Assistia da minha janela da rua das Calçadas a passagem dos paus de papagaios que iam para as casas que os vendiam no cais da Lingueta. Dos muitos exemplares raros de orquídeas que seguiam para a Inglaterra, por não valerem nada nas nossas matas, onde eram tratadas como parasitas e implicitamente nocivas às nossas árvores. E Recife de véspera de Natal onde ficava embevecido na minha inocência de criança vendo o desfilar do cortejo das carroças enfeitadas, puxadas por velhos bois magros e ronceiros, com velhas colchas nas costas e galhos de gameleira nas carroças a guisa de grinaldas e de festões.

O diabo de hoje já não tem nenhum efeito moralista. Desmoralisou-se por completo. Aparece, porém, ainda, como uma força que só os corajosos vão procurar, nessa ânsia de resolver o problema econômico da vida. É o diabo de uma outra época.

A ânsia de encontrar o ouro criou a alquirma, ânsia de acertar a milhar no jogo do bicho criou o inesperado: a realidade confundida teimosamente com a lenda.

Procurado, em vão, por todos os recantos e encruzílliadas, um diabo que já não mete medo nem provoca receios, sofre talvez, aí, a sua última desmoralização.

Em Santo Amaro das Salinas, o velho Santo Amato dos Viveiros de peixes e dos mocambos, à meia noite em ponto, numa encruzilhada, está parada uma mulher, rezando, para que o diabo apareça e diga-lhe a milhar do bicho, dando assim solução para todo um mundo de misérias em que vive.

Na ponta da rua, lá ao longe, surge um vulto preto, totalmente preto, onde os olhos brancos se realçam e se destacam. Aproxima-se, aproxima-se, e vai passando sem dizer uma única palavra.

A mulher enche-se mais de coragem, avança até ele e fala:

- Diga a milhar, diga!

E a figura do homem que ela julgava o diabo explica-se, deixando-a desapontada:

- Minha senhora eu não sou o diabo, não! Eu sou é carvoeiro que vem do serviço!

A realidade é confundida grosseiramente com a lenda e há assim a desmoralização completa de todos os diabos que ainda amedrontam tolos e crentes.

Fonte: Jangada Brasil  - (RIBEIRO, Chagas. Em Brasil Açucareiro).

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