As índias estavam nuas. E os portugueses chegavam cheios de apetite sexual. O Diabo estava feliz, com a faca e o queijo na mão. Depois, foi só cortar. E comer.
O Deus e o Diabo dos brancos chegaram ao Nordeste nas caravelas de Pedro Álvares Cabral. Enquanto Frei Henrique de Coimbra plantava a cruz da Fé celebrando a primeira missa, que também foi assistida pelos indígenas, o Diabo fazia das suas, desviando a atenção dos membros da expedição portuguesa para a nudez acobreada das mulheres nativas.
Há mais de 6 meses em alto-mar, os marinheiros de Cabral desembarcaram sob o domínio de forte apetite sexual. E "o europeu saltava em terra escorregando em índia nua. As mulheres foram as primeiras a se entregar aos brancos, as mais ardentes Indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho", escreve o sociólogo a antropólogo Gilberto Freyre. Estava o Diabo com a faca e o queijo, com a fome e a vontade de comer, tentando os homens, ajudado pela ausência de mulheres brancas.
Naquele tempo, o Diabo estava no apogeu de sua fama, respeitado e temido no mundo inteiro, personagem central de tudo quanto ara lenda, estórias e crendices armazenadas desde o começo do mundo. Os tripulantes das caravelas trouxeram para cá estas crenças. Povo muito aventureiro, o português gostava de procurar novas terras, negociar com outros continentes, enriquecendo assim sua herança mística, fortalecendo o que já tinha de mítico no seu mundo interior onde se uniam o real e o imaginário. Cada um respeitava o temia o Diabo conforme o uso de sua província. No entanto, era generalizada a crença de que se alguém pronunciasse o nome do Diabo, ele poderia aparecer. Para que Isso não acontecesse, os portugueses inventaram apelidos para o Diabo, que eram uma maneira de enganá-lo.
A fim de evitar que os homens pecassem tanto, quando a luxúria dominou as primeiras décadas da colonização, os missionários usavam, na catequese, o Diabo como arma poderosa. Pintavam seu retrato com cores fortíssimas, para que o impacto fosse ainda maior. Assim, o Diabo era preto, usava chifres, tinha o nariz adunco por onde expelia fogo e fumaça, os pés eram de pato, a cauda terminava em forma de seta, parecia um morcego, sua presença era sentida por causa do cheiro de enxofre que exalava e só andava com um espeto na mão. As vezes, para melhor tentar os homens, disfarçava-se em animais, tomando a forma de um cachorro, de um porco, um bode, um gato ou outros bichos.
E, foi, assim que o Diabo chegou ao Nordeste. Com muitos apelidos. Com muita fama. Respeitado e temido. Enchendo a cabeça dos portugueses de luxúria. Enriquecendo a cultura popular da região.
Se os homens costumam falar no Diabo a troco de nada, já com as mulheres acontece justamente o contrário. Dóceis pela própria natureza, levando a vida quase sempre dentro de casa ou ajudando no roçado da família, carregando água da cacimba, amarrando as cabras, trazendo lenha, pensando mais nas coisas da Igreja, as mulheres vivem com a boca cheia de Deus e do Céu. A verdade é que as mulheres, na sua maioria, não gostam de falar no Diabo porque têm medo dele. E, quando falam, sempre procuram os apelativos mais inocentes e menos diabólicos como "Capeta", "Capiroto", "Fute" e tantos outros. Os homens acham que não fica bem viver sempre falando no nome de Deus e dos santos, por machismo, ou por não se prestarem aos seus freqüentes desabafos.
E porque Deus e o Diabo participam tanto da linguagem nordestina? Sua secular estrutura religiosa constitui um dos fatores mais importantes dessa participação. Talvez a adversidade da natureza quase sempre madrasta e incerta, o trabalho duro do campo, a injustiça social, o abandono em que vive ainda o nordestino, também sejam responsáveis por essa angústia, por esse desespero. Nos momentos de admiração e de surpresa, de tristeza ou de alegria, é muito comum o uso da parte das mulheres, principalmente, de expressões como "Minha Nossa Senhora!", "Nossa Mãe do Céu!", "Santo Deus!", "Se Deus quiser!", "Deus é quem sabe...", "Graças a Deus!" Mas o Diabo e o inferno são muito mais freqüentes no diálogo do nordestino "homem", talvez porque aconteçam mais coisas ruins do que boas em sua vida. E, para desabafar, nada como um "Com todos os diabos"' já que o Diabo é sinônimo de tudo o que é ruim. Em matéria de Diabo, a coisa só muda de figura quando se fala em "diabo-de-saia" ou "diabinho", com significações de bem-querer.
Diabo sempre foi uma palavra um tanto ou quanto misteriosa, diabólica mesmo. O jeito que houve foi inventar outras palavras para que o nome do Demônio, do Satanás, do Diabo, não fosse pronunciado. Começaram abreviando o nome: "Diá", "Demo", "Satã". Depois criaram corruptelas da palavra: "Diacho", "Diangas", "Dianho".
Vejamos alguns apelativos do Diabo, correntes no Nordeste: "Afuleimado", "Amaldiçoado'', "Arrenegado", "Barzabu", "Bicho-Preto", "Bruxo", "Cafuçu", "Canheta", "Capa Verde", "Diogo", "Diale", "Dedo", "Ele", "Esmolambado", "Excomungado, "Feio", "Feiticeiro", "Ferrabrás", "Futrico", "Gato-Preto", "Imundo", "Inimigo", "Lúcifer", "Mequetrefe", "Mal-Encaracio", "Mofento", "Não-Sei-Que-Diga", "Negrão", "Nojento", "Pé-deCabra", "Pé-de-Pato", "Peitica", "Rabudo", "Rapaz", "Sapucaio", "Sarnento", "Tição", "Tisnado", "Tinhoso".
Com relação ao Diabo, as locuções populares funcionam, às vezes, como uma faca de dois gumes, dicotomicamente, elogiando ou ferindo, perguntando ou respondendo, afirmando ou negando, dependendo apenas da entonação da voz ou de simples modificação que se fizer na construção da frase. "Eita, Diabo!" - por exemplo, é uma locução que se presta a diversas maneiras de dizê-la. "Eita, Diabo! Que mulher horrível!", nega a beleza de uma mulher; "Eita, Diabo! Vá ser boa assim no inferno!" - já é um elogio.
Aqui estão algumas das inúmeras locuções populares envolvendo o Diabo: "acender uma vela a Deus e outra ao Diabo"; "agüentar o que o cão enjeitou no inferno"; "artes do diabo"; "com o cão no couro"; "com o Diabo nos chifres"; "catinga de cão"; "dar um quarto ao Diabo"; "deu o bute"; "Deus fez e o Diabo juntou"; "Diabos te carreguem para as profundezas do inferno"; "do jeito que o Diabo gosta"; "é o cão"; "enquanto o Diabo esfrega um olho"; "escritinho o cão"; "fuzuê dos diabos"; "homem do Diabo"; "Inferno de pedra"; "Mulher do Diabo"; "vá pros quintos dos infernos"; "viva Deus e morra o Diabo".
Entre a população rural, principalmente, o Diabo é muito temido pelo mal que faz. Se não choveu, se a vaca morreu mordida de cobra, se alguém caiu do cavalo e quebrou a perna, quem leva a culpa é o Diabo. Os poetas populares, nascidos e criados nos brejos, nas caatingas, nos pés de serra, retratam, em seus folhetos, toda a atmosfera religiosa que envolve o nosso homem da zona rural, onde a figura do Diabo é muito popular.
Nas feiras das cidades, vilas e povoados, o povo gosta de ouvir o vendedor de folhetos debaixo de seu guarda-sol, transpirando pelos cotovelos, contar histórias onde o Diabo aparece, pinta o sete e, na maioria das vezes, é logrado, como no folheto de José Costa Leite que conta a estória de "A Mulher que Enganou o Diabo":
No Estado da Bahia, morava um camponês chamado Otaviano Aragão, casado com Isabel Maria da Conceição e que viviam da caça e da pesca. Um dia, quando Otaviano estava pescando, avistou uma garrafa boiando, vazia, mas muito bem arrolhada: "Ele avistou na garrafa/ uma fumaça azulada/ mas como a garrafa estava/ completamente tampada/ ele levou para casa/ sem desconfiar de nada." Quando chegou em casa, Otaviano botou a garrafa em cima de uma mesa e foi cuidar da vida. A mulher, arrumando a casa, encontrou a garrafa e, curiosa, passou a examiná-la. A garrafa estava cheia de uma fumaça azulada e dela saía uma voz pedindo para a mulher tirar a rolha. Quando Isabel destampou a garrafa, saiu de dentro dela um negro bem alto, bem feio, de uma perna só, que era o Diabo em figura de gente.
A mulher ficou apavorada, mas urdiu um plano e falou para o Diabo: - "Onde você estava?/ a mulher lhe perguntou."/ Disse o negro: "Na garrafa/ e quando você destampou/ eu saí de dentro dela/ porém você não notou."/ A mulher disse: -"Eu não creio!/ de você tenho até pena/ pois você é muito grande/ e a garrafa é pequena/ e você não cabe dentro/ e digo, ninguém me condena./ O negro disse: - Eu juro/ como estava dentro dela/ há mais de 200 anos/ que a minha morada é ela."/ a mulher disse: - "Eu só creio/ quando você entrar nela./ E se você não entrar/ não venha enganar a mim/ se você estivesse dentro/ já tinha levado fim/ como é que você entra?"/ O negro disse: - "E assim."/ E para provar a ela/ o negro se transformou/ numa nuvem de fumaça/ e na garrafa entrou/ a mulher botou a tampa/ bateu a mão e tampou."
E depois o marido chegou e começou a conversar com o Diabo, que lhe contou o acontecido, choroso e triste. A mulher tornou a abrir a garrafa com a condição de fazer uma aposta para ver quem nadava mais. Mas, no dia da aposta, a mulher bolou outro plano. Levou um vestido de couro e outro igual, embrulhado. Na hora, botou um dos vestidos no outro lado da lagoa,, numa touceira de bananeira sem que o Diabo visse, e tirou o vestido que usava e tibungou dentro d'água: "Na vista do Diabo a mulher/ o seu vestido tirou/ e mergulhou na lagoa/ o diabo também mergulhou/ a mulher saiu e vestiu/ o outro vestido e voltou./ O Diabo mergulhou tanto/ que só faltou se acabar/ depois levantou a cabeça/ para não se afogar/ e viu o vestido dela/ ainda no mesmo lugar./ ele tornou a mergulhar/ e demorou outro tanto/ ao levantar a cabeça/ sentiu o maior espanto/ o vestido da mulher/ estava no mesmo canto."
Nas estórias que o povo gosta de contar nos momentos de lazer, o Diabo é uma constante. Vejamos esta: "A mulher, o menino e o Diabo": "0 Diabo ia andando de estrada afora quando avistou, de longe, um magote de meninos, cada um com sua "Baladeira". Mais do que depressa, o Diabo, querendo bancar o sabido, subiu num pé de caju e se transformou num cupim. Os meninos se aproximaram do cajueiro e um deles falou: - Já que não encontramos passarinhos, vamos ver quem acerta no cupim? Os meninos não tiveram dúvida. Descobriram o cupim do cajueiro e tome pedra. O Diabo, danado da vida, pulou de raiva e disse: - Ah! Já vi que de menino e de mulher nem o Diabo se livra. E saiu correndo mundo afora."
Tratando-se de uma figura muito popular no Nordeste, o Diabo não está apenas na linguagem popular, na literatura de cordel, nas estórias que o povo gosta de contar no seu lazer noturno (quem conta estória de dia cria "catoco") nos alpendres das fazendas, nas bodegas das beiras de estrada ou nas praças públicas, na literatura regional. Na Adivinhação, o FUTE é a resposta para perguntas como essas: "0 que é, o que é? É alto e baixo, gordo e magro, bonito e feio, preto e branco?" Ou, também: "Tenho chifres, rabo e tenho dentes; sou um cara quente. Quem sou, eu?"
Nos folguedos populares que se perpetuam através da oralidade como manifestação dramática, o "capiroto" não podia deixar de ter sua participação, sob pena de dar motivo à separação do popular e da popularidade. Segundo Hermilo Borba Filho, "no bumba-meu-boi", a certa altura do folguedo o "Morto-carregando-o-vivo" pede ao padre que dê um jeito para tirar o outro de suas costas; os dois discutem, o padre se zanga, começa a dizer nomes feios, entra o Diabo-Padre: - Seu Capitão, eu não sou mais padre, não sou mais nada, sou o Diabo do Inferno!
O Diabo, de roupa vermelha, as asas pretas, de rabo, botando fogo pela boca, carrega o "Morto-carregando-o-vivo'", o Padre e o Sacristão para as profundas dos infernos."
Henry Koster, em 1814, assistiu e registrou, em seu livro de viagens, a um fandango em Itamaracá, Pernambuco: "A cena representa um navio no mar, que a princípio é impelido por ventos favoráveis, mas que para o fim da viagem vê-se em apuros. A causa do mau tempo custa a ser conhecida, mas, por fim, a tripulação descobre que o Diabo está no navio, sob a figura do gajeiro da mezeria. Os personagens representados são: o capitão, o piloto, o mestre de equipagem, o contramestre, o capelão, o ração e o vassoura, servindo estes dois últimos de palhaço, e finalmente, o gajeiro da gata, ou o Diabo, que toma parte em vários quadros do folguedo."
No mamulengo baiano, o Diabo tem o nome de "Compra-barulho". O "Diabo" e a "Morte", afirma Hermilo Borba Filho, são "duas figuras indispensáveis em quase todas as pecinhas de mamulengueiros".
O pastoril é outro folguedo popular ainda hoje representado em muitas cidades do Nordeste durante o mês de dezembro. Escreve Hermilo: "0 auto conta a história das pastoras a caminho de Belém, onde nasceu Jesus, Lusbel (0 Diabo) lança mão de mil artimanhas para desviá-las do caminho e só não consegue seu intento por causa da intervenção de São Gabriel. Vendo frustrado o seu intento, Satanás convence Herodes a promover a degola dos inocentes, mas o tetrarca é castigado porque os soldados matam seu filho. Herodes se arrepende e é salvo, enquanto o Demônio e mais uma vez derrotado."
Nos provérbios, que são a sabedoria e a filosofia do povo, o Diabo também não perdeu a vez de mostrar seu espírito maligno, sempre procurando uma maneira de interferir na vida das pessoas. Vamos encontrar muitos provérbios nos quais o Diabo atua como força do Mal:
"A cruz nos peitos e o Diabo nos feitos/ O homem é o fogo e a mulher é a pólvora (ou a palha), vem o Diabo e sopra/ Quando o Diabo reza é porque ele quer enganar/ Quando Deus dá a farinha, o Diabo rasga o saco/ Com mulher de bigode, nem o Diabo pode/ Cada um na sua casa e o Diabo não tem o que fazer/ A tristeza é o aboio de clamar o Diabo/ Mente vazia é a oficina do Diabo/ Quando um homem dança com uma mulher, o Diabo está no meio/ Muitos diabos-te-levam botam uma alma no inferno/ Gente pobre é com quem o Diabo faz a feira/ O cão matou a mãe com uma espingarda sem cano, descarregada/ Mula estrela, mulher faceira e boi de arroeira, o Diabo que queira/ No cruzado do sovina, o Diabo tem pataca e meia/ A quem Deus não dá filhos, o Diabo dá sobrinhos/ Quem Diabos compra, diabos vende/ Pra se ver o Diabo não é preciso sair de casa/ De quem o Diabo leva os dentes, Deus alarga a goela/ O homem é um canalha que traz a vara do Diabo entre as pernas/ Pra encontrar o Diabo não é preciso fazer madrugada/ Quem faia no Diabo olha para a porta/ Tão bom é o Diabo como a mãe do Diabo/ O Diabo atenta e o ferro entra/ O Diabo não faz graça para ninguém rir/ O Diabo quando tem fome come moscas/ O Diabo tem duas capas/ A gente trabalha pra Deus, pra si e para o Diabo/ A quem o Diabo torna uma vez, sempre fica o feito/ Quando o gosto é do defunto, o Diabo carrega o enterro/ Depois que o Diabo come chegam as colheres/ O Diabo ajuda a família toda/ O Diabo tanto buliu com a venta da mãe que a venta ficou torta/ Quem é burro pede a Deus que o mate e ao Diabo que o carregue/ Bom com Deus, bem com o Diabo."
Fonte: Revista Ele Ela nº 75 de julho de 1975
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