segunda-feira, 14 de março de 2011

A mão do hindu

Todos sabem que Sir Dominick Holden, o famoso cirurgião da Índia, fez-me seu herdeiro, e, desse modo, transformou um médico pobre num opulento proprietário. Muitos, também, sabem que, pelo menos, cinco pessoas se atravessaram em meu caminho, por julgarem a escolha de Sir Holden arbitrária ou caprichosa.
A estas, posso assegurar que estão redondamente enganadas e que, embora eu conhecesse Sir Holden apenas nos últimos tempos de sua vida, ninguém fez mais por lhe merecer a estima. Posso, mesmo, afirmar que, em toda sua vida, ninguém fez mais por ele. Não pretendo que aceitem a minha afirmativa, nem que creiam no que vou contar; parece obra de pura imaginação; mas, como me sinto no dever de contá-la, aqui a ponho, quer me creiam, quer não.

Sir Dominick Holden foi o mais notável cirurgião da Índia, no seu tempo. Começou no Exército mas, depois, estabeleceu-se, como particular, em Bombaim, donde era clamado para todos os pontos da Índia. 
 
Seu nome está muito ligado ao Hospital Oriental, por ele fundado e mantido. Tempo veio, entretanto, em que a sua constituição de ferro começou a dar sinais de cansaço, fazendo com que seus colegas (talvez não desinteressadamente) unânimes em aconselhá-lo a voltar à Inglaterra. Sir Holden resistiu quanto pôde, até que seu estado se agravou e ele ressurgiu em Londres, alquebrado, em busca de Wiltshíre, sua terra de nascimento. Lá, adquiriu uma grande propriedade, na fímbria da Alisbury Plain, e consagrou seus últimos anos ao estudo da Anatomia Comparada, que era sua vocação e na qual se tornara autoridade Mundial.
Nós, da família, ficamos muito excitados com a volta Já esperada de tio tão rico e sem filhos. Sir Holden, embora nada exuberante na hospitalidade, mostrou que tomava os parentes em linha de conta, a cada um de nós mandando, alternativamente, convite para uma estada lá. Desejava conhecer-nos. Por um primo, tive informação de que essas estadas eram bem melancólicas e, em vista disso, foi com idéias mal definidas que me dirigi para lá, quando minha vez chegou.

Minha mulher fora tão deliberadamente excluída do convite, que o meu primeiro ímpeto foi recusá-lo; mas, havia interesses em jogo – interesses dos filhos e, movido pela insistência de todos, pus de lado o ressentimento e, numa tarde de outubro, parti para sem, nem por sombras, imaginar o que iria suceder. A propriedade de meu tio estava situada na planície de terras aráveis, alternadas com morretes de grés, caraterísticas do condado de Wiltshire. Quando desci na estação de Dinton, ao apagar-se daquele dia de outono, senti-me impressionado pelo tom de magia da paisagem. Os escassos cottages de camponeses ficavam tão minúsculos diante dos restos da vida pré-histórica, que o presente se me afigurava um simples sonho e, o passado, uma realidade esmagadora. O caminho coleava ao sabor de vales rasgados entre morros, em cujos topos se erguiam fortificações, redondas umas, outras quadradas, desafiadoras da ação dos ventos e das chuvas através dos séculos. Uns as atribuem aos romanos; outros, aos bretões; mas, a sua verdadeira origem está muito entrelaçada de possibilidades para que possa ser tirada a limpo. A espaços, nas encostas escarpadas, emergem restos de túmulos. Neles subsistem as cinzas dos cadáveres cremados, da raça que esburacou daquela maneira a montanha. Uma urna de barro em cada túmulo conta que ali se dissolveu um homem que já viveu sob o sol.

Foi através dessa impressionante paisagem que me aproximei da residência de meu tio, em Rodenhurst, solar que se casava harmoniosamente com o meio. Dois pilares, corroídos pelo tempo e encimados de, emblemas heráldicos, flanqueavam o portão de entrada. Um renque de olmos seguia-se, agitado pelo vento gelado e a desfazer-se das folhas amarelecidas. Ao fim desse túnel vegetal, uma lâmpada. Era já quase noite, mas pude apanhar a vivenda em osso. Suas roupas penduram pelos ombros, em visão de conjunto uma casa baixa, que se estirava em duas alas desiguais, bem no estilo dos Tudors. Certa janela, com persianas, mostrava luz dentro, era o gabinete de meu tio, para onde me levou um criado. Encontrei-o junto à lareira, tiritando ao áspero frio do outono inglês. Não estava acesa a lâmpada, de modo que vi Sir Holden à luz do braseiro, cabeça grande, nariz de índio, rosto sulcado de rugas, como marcas sinistras de oculto fogo vulcânico. Sir Holden ergueu-se para receber-me, num gesto de cortesia grata às tradições do velho solar. Um criado veio acender as lâmpadas e pude ver que um par de olhos, penetrantes como o das águias, escondidos debaixo do espesso das sobrancelhas scouts atrás das moitas estavam lendo o meu caráter e os meus pensamentos, com a facilidade dum mestre nos segredos da vida. Eu não Podia despegar dele os meus olhos, porque jamais vira diante de mim uma criatura mais digna de nota. Um verdadeiro gigante, mas despido de carnes e só pareciam vazias, como as que se num cabide de guarda-roupa. As mãos eram só nós; as pernas, magríssimas. Os olhos, porém, aqueles perscrutadores olhos azuis, impressionavam mais que tudo.

Não pela cor, apenas, nem pelo fato de estarem emboscados sob as sobrancelhas espessas mas pela expressão. Do seu todo agigantado e senhoril, era de esperar-se, naqueles olhos, uma expressão de arrogância; ao invés disso, tinha a que emana de um espírito acovardado e agachado, com o furtivo e expectante do olhar do cachorro que vê o senhor levantar o chicote. Mentalmente, murmurei o meu diagnóstico, com base naquela expressão.

Vi que meu tio estava em luta com alguma doença mortal, dessas que extinguem uma vida repentinamente e percebi que isso o aterrorizava. Era o chicote erguido. Tal foi o meu diagnóstico mas errado, como os acontecimentos o provaram. Menciono-o para que o leitor acompanhe a marcha das minhas impressões. A recepção de meu tio foi, como já disse, cortês, e. uma hora depois, vi-me sentado entre ele e sua esposa, à mesa de jantar, diante de iguarias requintadas, e servido por criados do Oriente. O velho casal voltava, tragicamente, ao viver antigo dos começos do casamento, agora que se viam no fim da vida, sozinhos, sem amigos íntimos, já com a missão cumprida e à espera apenas do ponto final. Os que chegam a essa estação, com suavidade e amor, os que transformam o seu inverno em outono, saem da vida como vencedores. Lady Holden era uma criatura franzina e viva, com olhares para o marido, que eram certificados do nobre caráter do velho companheiro.

Entretanto, embora eu lesse amor mútuo naqueles olhos, também lia um mútuo terror, que interpretei como o medo do fim. A conversa de um ou de outro era, às vezes, alegre, às vezes, triste mas percebi esforço na nota alegre e muita naturalidade na nota triste o que me esclareceu sob o estado real dos corações que lhes palpitavam no peito.

Estávamos no primeiro copo de vinho, e os criados já haviam deixado a sala, quando a conversa tomou rumo imprevisto. Não me lembro o que nos pós naquele caminho, a debater o sobrenatural, assunto que me levou a discorrer sobre estudos psíquicos, aos quais me tenho devotado, como muitos outros neurologistas. Expus a experiência feita com membro da Psychical Research Society, quando, com mais três colegas, passara uma noite num prédio assombrado. Era um caso de nenhum modo excitante, ou convincente; mesmo assim, interessou meus tios no mais alto grau.

Ouviram-me em completo silêncio, trocando, a espaços, olhares que não pude compreender. Logo depois, Lady Holden ergueu-se da mesa e saiu da sala. Sir Holden ofereceu-me charutos e pusemo-nos a fumar em silêncio. Notei que sua mão, toda ossos, estremecia ao levar o charuto à boca, e por esse detalhe conheci que seus nervos vibravam como cordas de violino. Pressenti que estava na iminência duma confissão e calei-me, para melhor precipitá-la. Por fim, voltou-se na cadeira e teve um gesto de quem lança de si os últimos escrúpulos. Do pouco que sei, vi e ouvi do Senhor, Dr. Haracre, disse- me e, verifico que é exatamente o homem que procuro.

Encanta-me muito ouvir isso, Sir. Sua cabeça me parece firme e fria. Não suponha que eu esteja a lisonjeá-lo. As circunstâncias são por demais sérias para que eu perca tempo com insinceridades. O senhor tem conhecimentos especiais destes assuntos e os vê de um ponto de vista filosófico, que lhes tira toda a vulgaridade. Diga-me: acha que poderia assistir a uma aparição, sem impressionar-se de maneira desastrosa? Perfeitamente, Sir. E interessa-se por isso? Profundamente. Como observador psíquico, pode o Senhor ponderar sobre o fato, de um modo impessoal, como o astrônomo pondera sobre um cometa que surge? Exatamente, Sir.

O velho deu um prolongado suspiro. Creia-me, Dr. Hardacre, que houve tempo em que eu não podia falar como estou agora falando. Minha calma ficara famosa, na Índia. Ainda durante os dias trágicos da insurreição dos cipaios, essa calma não me abandonara por um só instante. E, no momento, veja ao que me acho reduzido. Sou a mais apavorada criatura de todo o condado de Wiltshire. Não fale muito arrogantemente dessa matéria, que se arrisca a um terrível teste como o que tive - um teste que poderá levá-lo ao hospício ou ao túmulo.

Esperei pacientemente que Sir Holden entrasse no âmago da sua confidência. Aquele prefácio enchera-me de curiosidade.

De alguns anos a esta parte, começou ele, a minha vida, e a de minha mulher, tornou-se profundamente miserável, por um motivo que parece grotesco. E a familiaridade com esse motivo, ao invés de tudo atenuar, como faz toda familiaridade, mais e mais me destrói os nervos pelo atrito constante. Se o Senhor não sente o medo físico, Dr. Hardacre, eu terei muito gosto em ouvir sua opinião sobre o fenômeno que tanto nos perturba. Embora pouco valha minha opinião, estará ela inteiramente ao seu serviço, Sir. Poderei saber a natureza desse fenômeno? Creio que sua opinião terá maior valor se de nada for informado antecipadamente. O Senhor sabe muito bem a ação das impressões subjetivas sobre o objetivo, e deve guardar-se de tê-las a prejudicar a experiência. Que devo fazer, então?

Vou dizer. Quer ter a bondade de acompanhar-me? E, assim dizendo, Sir Holden levou-me para fora da sala, rumo a um grande laboratório, cheio de instrumentos científicos. Uma prateleira corria pela parede, com dezenas de vidros contendo preparações anatômicas. O Senhor vê que eu ainda insisto nos meus velhos estudos, disse o famoso cirurgião. Estes frascos constituem os remanescentes da preciosíssima coleção que perdi no incêndio de minha casa, em Bombaim, no ano de 1892. Foi um grande desastre na minha vida, sob vários aspectos. Eu possuía exemplares únicos, em matéria de desvios anatômicos. Restam-me estes sobejos.

Corri os olhos pela coleção, e notei que eram realmente objetos de grande valor, pela raridade do ponto de vista patológico – órgãos anormais, ossos mal formados, distúrbios parasitários, uma singular exibição de transtornos orgânicos, coletados na Índia.

Temos, aqui, um divã disse o velho sábio. Nunca foi minha intenção oferecer a um meu hóspede tão incómodo leito; mas, já que as coisas chegaram a este ponto, seria interessante que o Senhor consentisse em passar a noite neste laboratório. Isso, caso não lhe repugne fazê-lo. Decida com toda a sinceridade. Bem pelo contrário, Sir. Será com grande prazer que me submeterei à experiência. Meu quarto é o segundo à esquerda e, se necessitar de mim, para o que quer que seja, não tenha escrúpulos em chamar-me.

Espero não ser forçado a perturbar o seu repouso, Sir. Não receie acordar-me. Raro durmo. Estarei sempre alerta, e às suas ordens.

Não foi afetação ou exagero de minha parte dizer que sentiria prazer em passar a noite ali. De nenhum modo pretendo ter mais coragem física do que qualquer outro; mas a familiaridade com um assunto atenua a sua impressão sobre nós. O cérebro humano é capaz duma só emoção forte cada vez, mas, se está tomado de curiosidade, ou entusiasmo científico, não cabe nele o medo. É verdade que eu ouvira de meu tio o contrário disto atribuí o fato à fraqueza e decadência dos seus nervos. Eu, pelo contrário, estava perfeito de saúde e nervos, e, por isso, ansioso como o caçador pela caça. Fechei a porta do laboratório e deitei-me no divã. Não era o ambiente ideal para um quarto de dormir. Ar pesado e impregnado de cheiros de drogas, entre os quais predominava o do álcool mitílico. As decorações, igualmente, eram nada sedativas.

Havia a odiosa prateleira de relíquias de doenças horrorosas a tomar-me os olhos para onde quer que os voltasse. As janelas não tinham cortinas, de modo que a lua, em minguante, punha na parede fronteira um quadrilátero de prata. Quando apaguei a lâmpada, essa claridade assumiu singular importância. Silêncio absoluto pela casa inteira, e tal que o rumor das brisas nas árvores, lá fora, chegava até mim. E, ou fosse o embalo hipnótico desses sussurros externos ou o cansaço dum dia de viagem, cheio de emoções, breve me senti imerso em sono profundo. Fui despertado por um rumor qualquer, que imediatamente me fez sentar no divã. Algumas horas já se haviam passado, de modo que o quadrilátero de luar mudara de posição, aproximando-se de mim.

O resto da sala desaparecia, imerso na escuridão. A princípio, nada vi; depois, à medida que meus olhos se iam afazendo à penumbra, verifiquei, com um arrepio pelo corpo, que qualquer coisa movia ao longo da prateleira. Um som macio, como de sandálias, chegou-me aos ouvidos, e, vagamente discerni um vulto humano, que caminhava cauteloso.

Ao cruzar pela faixa de luz, pude distingui-lo com precisão. Era um homem atarracado, vestido duma espécie de burel escuro, que lhe caía, liso, dos ombros aos pés. Tinha a cor do chocolate e, na cabeça, uma massa de cabelos negros enrodilhada atrás, como certas mulheres usam. Caminhava lentamente, com os olhos fixos na direção dos frascos cheios dos horríveis resíduos humanos. O vulto ergueu as mãos. Não foi bem isso. Ergueu os braços, em gesto de desespero, e percebi que tinha só uma das mãos. O braço direito terminava em um coto. Em tudo mais, era um homem qualquer, podendo passar por um dos criados de Sir Holden que ali houvesse entrado em busca de qualquer coisa. Unicamente a sua súbita aparição é que me sugeriu algo de sinistro. Levanteime, acendi a lâmpada e examinei cuidadosamente a sala. Não havia sinal do meu visitante e tive de concluir que sua aparição representava algo fora das leis naturais que conhecemos. Fiquei acordado pelo resto da noite, porém, nada mais aconteceu. Sou madrugador, mas o meu tio o era ainda mais. Quando deixei o laboratório, já o encontrei medindo passos, à frente da casa. Ao ver-me, precipitou-se ao meu encontro.

— Então?! — exclamou. — Viu-o? Um indiano sem uma das mãos?

— Sim. Vi-o, sim.

Contei-lhe tudo quanto ocorrera. Ao concluir, Sir Holden encaminhou-se para o seu gabinete.

Temos algum tempo antes do breakfast, disse ele. Bastará para que eu lhe dê uma explicação deste mistério se é que posso explicar o inexplicável. Em primeiro lugar, se eu lhe disser que, de quatro anos para cá, tanto em Bombaim como a bordo ou aqui, ainda não se passou uma só noite sem que o meu sono fosse perturbado por essa aparição, o Senhor compreenderá o motivo deste meu miserável estado. O programa é sempre o mesmo. Surge à beira do meu leito, sacode-me rudemente pelos ombros, seque para o laboratório, caminha lento na direção da prateleira e desaparece. Por mais de mil vezes, já fez isso.

Que é que ele quer? Quer a sua mão. Sua mão... Sim, só quer isso. Vou contar. Fui, uma vez, chamado, o Peshawer, para uma consulta, dez anos atrás, e, nessa ocasião, tive ensejo de examinar um hindu, que passava numa caravana afegã. Esse: hindu das montanhas, lá do outro lado de Kaffrístã, falava um dialeto pushtoo. Foi tudo quanto pude saber. Sofria duma inchação sarcomatosa, na junta de um dos metacarpos, e verifiquei que somente lhe amputando a mão poderia salvar-lhe a vida. Após muita luta, o homem consentiu em ser operado e, depois da operação, pediu-me a conta. O pobre homem não passava dum quase mendigo, de modo que a idéia de conta soava absurda e respondi, brincando, que aceitava, como pagamento, o membro amputado, para o ter na minha coleção. Com surpresa minha, o hindu resistiu à proposta, explicando que, de acordo com as suas crenças, era matéria muito importante que o corpo se apresentasse inteiro, depois da morte. Esta crença é muito espalhada, e encontreia também no Egito. Lembrei-me que a mão já estava cortada e que ele não tinha meios de conservá-la para reuni-la ao corpo, depois que morresse. Respondeu-me que a conservaria em sal, trazendo-a sempre consigo, o que me fez alegar que estaria mais segura comigo, pois possuía melhor meio de conservá-la do que o sal. O homem compreendeu minha alegação e cedeu, dizendo: Sim, Sahib, mas lembre-se de que quero que ma devolva, depois que eu morrer. Ri-me dessa exigência e o caso ficou por aí. Voltei à minha vida habitual, enquanto o operado, já de vida salva, pôde pensar na sua viagem para o Afeganistão. Mas, como lhe contei ontem, fui vítima daquele incêndio, em Bombaim. Metade de minha casa foi destruída e, com ela, quase toda a minha coleção. O que salvei foi quase nada. A mão do hindu perdeu-se no incêndio. Dois anos depois, fui, certa noite, despertado por um vigoroso puxão na manga. Sentei-me na cama, certo de que meu cachorro entrara no quarto. Em vez do cachorro, vi diante de mim o hindu operado, vestido no burel que lá usam, a olhar-me com expressão de censura, enquanto estendia o braço sem mão. Em seguida, caminhou ao longo da prateleira de frascos, que nessa época eu conservava em meu quarto. Examinou-os todos e, com um gesto de cólera, desapareceu. Compreendi que acabara de falecer e que, tal como prometera, tinha vindo buscar a mão que me dera para guardar.

Eis aí o caso, Dr. Hardacre. Todas as noites, desde essa época, e à mesma hora, o fato se repete. Isso há já quatro anos. O efeito causado em mim pode equiparar-se ao do suplício da gota de água. Trouxe-me a insônia, porque não há dormir possível com o pensamento no que a horas tantas vai fatalmente suceder. Isso envenena-me os últimos anos de vida, e também os de minha mulher, que é companheira em tudo. Nesse momento, soou a campainha, anunciando o breakfast.

Vamos para a sala de jantar. Minha mulher deve estar ansiosíssima por saber como o Senhor passou a noite. Estou muito grato pela coragem com que nos assistiu. porque o fato de uma terceira pessoa haver testemunhado a aparição tira-nos um peso da alma – a hipótese de ser loucura nossa: minha e de minha mulher. Foi essa a história que Sir Holden me narrou, uma história que para muitos parecerá da mais grotesca impossibilidade mas que, depois da minha experiência daquela noite, e também por causa das minhas experiências anteriores sobre a matéria, fui forçado a admitir como verdade pura. Após o breakfast, surpreendi meus hospedeiros com a notícia de que ia regressar a Londres pelo primeiro trem. Meu caro Doutor, disse Sir Holden tomado de surpresa, o Senhor faz-me crer que errei perturbar a sua estada aqui, pondo-o no conhecimento da minha estranha história.

É justamente esse assunto que me leva a Londres, respondi, mas de nenhum modo suponha que a minha experiência desta noite me fosse desagradável. Ao contrário, tanto que peço permissão para voltar à tarde, a fim de passar mais uma noite naquele divã.

Meu tio sossegou, e eu parti. Fui reler, em meu consultório, a passagem dum livro recente sobre ocultismo, que não me estava clara na memória. Essa passagem dizia assim: Quando uma idéia muito forte obseda uma criatura no momento de morrer, basta isso para mantê-la presa a este mundo material. Tornam-se quais verdadeiros anfíbios desta vida e da outra, e capazes de passar de uma para outra como a tartaruga passa da água para a terra. As causas que tão fortemente podem amarrar uma alma à vida que O corpo abandonou as emoções violentas. Avareza, vingança, ansiedade, amor e piedade, têm efeitos bastante conhecidos, neste pormenor. Em regra, tudo provém de um desejo violento, e só quando esse desejo se satisfaz o espírito se acalma. Há muitos casos que mostram a estranha insistência desses visitantes, ou o seu desaparecimento, depois que o desejo que os move é satisfeito ou quando um pacto se realiza. Quando um pacto se realiza esta era a frase sobre a qual eu estava incerto e queria firmar-me. No caso de Sir Holden, só um pacto poderia atender à situação. Quem sabe se não estava ali o remédio que ele tanto procurava? Tomei o primeiro trem para o Shadwell Seamens Hospital, onde o meu velho amigo Hewett era cirurgião. Sem entrar em explicações, fi-lo compreender exatamente o que eu queria. Uma mão morena! exclamou Hewett, atônito. Que raio quer fazer com ela? Não se preocupe com as minhas razões. Depois contarei tudo. Neste momento, preciso duma mão hindu e sei que há, aqui, muitas.

Isso lá é, mas... e o meu amigo, depois de refletir uns segundos, tocou a campainha.

Travers, disse ao auxiliar que apareceu, que fim levaram as mãos daquele lascar operado ontem? Aquele camarada da East India Dock, que foi colhido numa engrenagem? Estão no necrotério, Sir. Embrulhe-me uma delas e traga-ma. Foi assim que regressei a Rodenhurst, com aquele estranho embrulho, a tempo de alcançar o jantar. Nada contei a Sir Holden e, à noite, antes de deitar-me no divã, coloquei a mão morena num dos frascos de conserva, a certa distância de mim. Tão interessado fiquei pelos resultados da minha experiência, que nem pensei em dormir. Sentei-me, com a lâmpada bem sombreada pelo shade, e pus-me a esperar, com toda a paciência. Dessa vez, vi tudo claramente, desde o começo. O hindu apareceu na direção da porta, como na véspera, mas apareceu nebuloso; depois, fixou-se nas formas humanas. Trazia sandálias vermelhas, sem salto, o que explicava o macio do andar. Corporificou-se, e fez tudo como fazia sempre, caminhou na direção da prateleira de frascos e deteve-se diante do que continha a mão amputada. Agarrou o frasco, examinou-o, mas, com todos os sinais da fúria no rosto, arremessou-o por terra. O barulho inundou a casa e o hindu desapareceu imediatamente. Um momento depois, a porta abriu-se e Sir Holden entrava.

Não está ferido? Que houve? Ferido, não. Apenas desapontado. Sir Holden olhou com espanto para os destroços do frasco e para a mão morena, que jazia sobre o assoalho. Meu Deus! Que é isto? Contei-lhe, então, tudo. Sir Holden ouviu-me atento e meneou a cabeça.

Foi bem pensado, disse ele, mas receio que não seja fácil pôr termo aos meus sofrimentos. Numa coisa, porém, insisto. É que nunca mais durma aqui, nem se preocupe por mais tempo com este caso. Meu pavor de que alguma coisa lhe houvesse acontecido, quando ouvi o barulho, foi maior que todas as agonias lentas que ando sofrendo. Não quero expor-me a ver a repetição disso. Sir Holden, entretanto, permitiu-me passar o resto da noite ali, onde fiquei a lamentar o desastre da minha experiência. A luz da manhã veio iluminar a mão do lascar ainda no chão. Pus-me a mirá-la, e de súbito uma idéia me fuzilou no cérebro, que me fez saltar do divã, trêmulo de emoção. De fato, a mão do lascar era a esquerda! Pelo primeiro trem, corri ao Seamens Hospital, terrivelmente apavorado com a hipótese de que a mão direita do hindu já houvesse ido para o forno crematório. Meu susto não durou muito tempo. Ainda lá estava o precioso objeto, que iria salvar a vida de um homem de ciência. E voltei para Rodenhurst, com a mão direita do lascar. Sir Holden, entretanto, não quis, nem por nada, que eu dormisse de novo no laboratório. Foram inúteis todas as minhas tentativas. Achava que isso ia de encontro a todas as regras da hospitalidade. Tive de colocar a mão direita do lascar no laboratório e ir acomodar-me num quarto próximo. Mas, a despeito disso meu sono foi do mesmo modo interrompido. Altas horas da noite, meu tio apareceu-me no quarto, de lâmpada em punho. Seu vulto agigantado vinha envolto num enorme pijama, e sua aparição seria mais terrível para um espírito desprevenido do que a do próprio hindu sem mão. Todavia, não foi a sua entrada o que me espantou e sim a expressão do seu rosto. Parecia remoçado vinte anos. Os olhos brilhavam, todo seu rosto irradiava e sua mão erguia-se no ar, em gesto de triunfo.

Sentei-me na cama e arregalei os olhos. Deu certo! Deu certo! – gritava ele. Meu caro Hardacre, como poderei pagá-lo do benefício que me fez? Explique-me isso. Que é que deu certo. Sir Holden? Creio que o meu amigo não ficará aborrecido de ser arrancado ao sono, para ouvir a grande nova. Mas, que é? Não tenho mais dúvida nenhuma e tudo o devo ao meu querido sobrinho. Nunca esperei isto de homem nenhum. Que poderei fazer que pague tão enorme beneficio? Foi a Providência que o mandou aqui para me salvar. Salvou-me a vida e a razão, porque eu não suportava mais este inferno em vida. O manicômio ou o túmulo já estavam à minha espera. E minha pobre mulher, a coitada! Nunca, nunca imaginei que essa carga pudesse ser arredada dos nossos ombros e, dizendo isto, abraçava-me com alegria infantil.

Foi apenas uma experiência, uma tentativa, e estou encantado que desse resultado. Mas, como sabe que está tudo bem? Viu alguma coisa? Sir Holden sentou-se à beira da minha cama. Vi tudo, disse ele. O Senhor sabe que, a horas certas, a criatura aparecia infalivelmente em meu quarto. Hoje veio, como de costume, e despertou-me, ou antes, puxou-me pela manga ainda mais violentamente que das outras. Parece que a decepção da véspera o irritara ao extremo. Olhou-me cheio de cólera e afastou-se, rumo ao laboratório. Poucos instantes após, vi-o de volta e, desde o inicio da sua perseguição, era a primeira vez que voltava ao meu quarto. Vinha sorrindo. Vi-lhe os dentes alvíssimos de fora. Parou na minha frente e por três vezes curvou-se, no clássico salaam, que é o modo solene de despedir-se dos orientais. Na terceira curvatura, seus braços ergueram-se à altura da cabeça e eu vi duas mãos desenharem-se no ar. Depois, esvaiu-se e creio que para sempre.

Eis narrada a curiosa experiência que me conquistou a afeição e gratidão desse meu famoso tio. Suas suposições realizaram-se, porque, desde essa noite, nunca mais foi perturbado pelas visitas do hindu maneta. Sir Dominic Holden e Lady Holden tiveram uma velhice muito feliz, sem nuvens, vindo a morrer por ocasião da grande epidemia de gripe, com diferença de semanas um do outro. Pelo resto de sua vida, nunca mais o bom velho deixou de consultar-me sobre tudo quanto dizia respeito à vida inglesa, da qual se afastara por muitos anos. Também o auxiliei na compra de outras propriedades, que lhe aumentaram os domínios. Não foi, portanto, nenhuma surpresa para mim quando o seu testamento me colocou na frente de cinco furiosos sobrinhos e me transformou de modesto médico de província em chefe de uma importante família de Wiltshire. Graças ao hindu de mão cortada, meu destino mudou-se completamente.




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