sábado, 31 de março de 2012

O calabar de batina

Gravura holandesa mostrando o cerco a Olinda de Pernambuco em 1630.

Foi o Brasil, no mundo colonial ibérico, a única região onde repercutiram as lutas religiosas travadas na Europa da segunda parte do século 16 à primeira do século 17. É esse um dos aspectos mais importantes das tentativas de fixação de franceses, ingleses e holandeses em vários pontos de nosso país. Pontos ainda não estudados convenientemente.

Até hoje, a nossos historiadores, preocupados tão-somente com as razões políticas ou com os fatores econômicos da pirataria e conquista daqueles povos contra os domínios ultramarinos dos portugueses, escapou aquela feição, nitidamente definida de alargamento também da esfera de influência protestante no universo.

A reforma luterana determinara, na Europa, a famosa guerra dos Trinta Anos, a que pôs termo, provisoriamente, a paz de Vestfália, celebrada em Münster, cujo tratado adrede feito nada mais foi que a sementeira de agitações e lutas que vieram até o tempo da revolução francesa, por sua vez preparadora doutras lutas e doutras agitações. Depois de Lutero, Calvino formou partidários na Suíça, Flandres e França. A nova seita protestante dividiu a catolicíssima nação em huguenotes e papistas.

A Espanha imperial e católica assumiu a liderança da contra-reforma. Daí suas intervenções na política francesa desde o século 16, suas guerras em Países Baixos contra os gueux calvinistas e seu longo duelo marítimo com a Inglaterra. Como nação também fundamentalmente católica, Portugal teve de sofrer ataques que se intensificaram em suas colônias da África, América e Ásia, sobretudo após sua queda sob o domínio espanhol.

A heresia calvinista procurou firmar pé no Brasil com o estabelecimento de Villegaignon na baía de Guanabara. Os fundamentos religiosos dessa tentativa são evidentes, pois discussões violentas em matéria de crença separaram os colonizadores da França Antártica, e o episódio de João de Bolés nos demonstra a tentativa de propaganda protestante entre os silvícolas, com destruição conseqüente da catequese jesuítica.

Na conquista de Pernambuco e terras adjacentes pelos holandeses, quase um século depois, é também claro o elemento religioso. Os hereges perseguiram os católicos em Recife e alhures, os passam a fio de espada como no engenho Cunhaú ou tentaram a propaganda calvinista no seio da indiada, além de serem apoiados sempre pela numerosa judiaria daquele tempo em terra brasileiras.

No bastidor dessa luta de religião no Brasil, há episódios interessantíssimos, que nos dão informes curiosos sobre caracteres e ações de indivíduos nela participantes, bem como até onde podia ir, na época, o sentido religioso da vida. O do jesuíta Manuel ou Francisco Morais, pois se não sabe bem seu nome de batismo, é dos mais elucidativos. No auto-de-fé realizado a 7 de abril de 1642, em Lisboa, pela Santa Inquisição, foi queimado em efígie.

O que teria feito o padre pra tão dura pena, embora fosse sacerdos in aeternum? Passou do lado dos pernambucanos, que defendiam o Brasil luso-católico ao dos holandeses, que representavam a conquista herege. E, como se isso não bastasse, sem trepidar, lançando a batina às urtigas, abjurou o catolicismo, se declarando calvinista e se casou com uma holandesa sectária desse credo. Grande e grave foi esse escândalo em nossa vida colonial.

Tão, grande e tão grave que repercutiu na própria existência, em nossas plagas, da ordem Inaciana, pois que o invocaram pra justificar a falta de confiança na mesma que alegavam todos quantos tinham interesse na escravização dos índios, que ela tenazmente combatia, a fim da pôr fora de seus arraiais. Não esqueçamos de que, um século e pico antes do marquês de Pombal, deste lado do Atlântico, especialmente no Maranhão e em São Paulo, se propugnou e efetuou a expulsão dos jesuítas. Em São Luís contra eles tenazmente lutou Manuel Bequimão.

No volume 1, páginas 684 e 685, de Cronologia paulista, de J. J. Ribeiro, se encontra, firmado por 124 homens bons de São Paulo, entre os quais Amador Bueno da Ribeira, o Aclamado, o que não quis ser rei, Domingos Jorge Velho, governador do gentio de cabelo corrido, herói de Palmares, um dos grandes generais do sertão, e todos os procuradores das vilas das capitanias de São Vicente e Santo Amaro, notável documento que declara ter sido a expulsão dos jesuítas de São Vicente, no mesmo ano, baseada no grande crime de padre Morais, da capitania de Pernambuco.

Leiamos nesse papel o trecho que mais nos importa:" ...e juntamente constando que um padre de sua mesma ordem, religioso professor, sacerdote e pregador, que governavam as aldeias dos índios de Pernambuco, por nome padre Francisco Morais, ao qual constituíram capitão e governo dos mesmos índios na guerra de Pernambuco contra os holandeses, se rebelou e lançou com o inimigo levantando guerra contra os nossos, assim ele com os mesmos índios, nos fazendo notável dano e morte, de que procedeu a total ruína de Pernambuco por serem os índios muitos em quantidade, e por remate se fez apóstata e foi casar em Holanda, e tem os ditos reverendos padres tanta mão com estes índios que se pode temer o risco de nossas vidas...".

Aqui os escravizadores da bugrada se sangraram em saúde, aproveitando a negregada traição e apostasia de padre Morais pra lançar caluniosa e vil suspeita sobre toda a companhia de Jesus, apontada sibilinamente como capaz de usar os índios contra os colonizadores lusos, como o fizera o infeliz sacerdote. Pra isso exageram a importância de seu ato injustificável, lhe atribuindo a total ruína de Pernambuco. Na opinião desses caçadores de escravo de São Paulo, fora padre Morais um verdadeiro Calabar de batina.

Grande e negra a traição, gravíssima a apostasia, mas nem uma nem outra de molde a causar essa total ruína ou a transformar em flamengo-herege o Brasil luso-católico. Na verdade, como chefe de várias aldeias de índios mansos ou em vias de redução, adotar o calvinismo e levar todos esses íncolas ao grêmio calvinista foi obra tão maléfica que custa a crer a tenha praticado um jesuíta. 

É o caso de recordar a lição camoniana de que, mesmo entre os portugueses, alguns traidores houve algumas vezes. Também entre os jesuítas. Não foi esse, infelizmente, o primeiro e único exemplo. Outros, embora raríssimos e distanciadíssimos, lhe sucederiam na viagem do tempo.

À gravidade do crime do Calabar de batina correspondeu a pena inquisitorial: Morte da fogueira do auto da fé lisboeta, em efígie, porque o novo calvinista se refugiara em Países Baixos, fora do alcance da justiça que o perseguia.

Gustavo Barroso
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.

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