sábado, 26 de janeiro de 2013

Alimentação das almas

Nos sertões da Bahia, principalmente em Juazeiro, as cerimônias religiosas da Quaresma e Semana Santa não se restringem aos atos litúrgicos, celebrados nas igrejas pelos vigários da área. Entre os habitantes da zona rural, mantém-se viva uma manifestação do maior envolvimento místo: as cerimônias de alimentação das almas, uma maneira muito própria de rezar pelos seus mortos.

São quinze mulheres, em média. Algumas ainda crianças, não passam dos dez ou vinte anos. Cobertas por um lençol branco caminham lentamente pela caatinga, para o cemitério de Rodeadouro, um lugarejo no sertão sanfranciscano, próximo a Juazeiro. De longe, ouve-se um canto meloso, triste, lembrando o cantochão.

Esse espetáculo, raramente presenciado por pessoas estranhas, repete-se às quintas e sextas-feiras da Quaresma, no interior da Bahia. Ao lado de um outro, onde o misticismo do povo do interior atinge ao grotesco, quando homens se flagelam com chicotes de couro com pontas de metal, a “alimentação das almas”, é uma manifestação religiosa em extinção, mas que resiste desde o fim do século passado, em regiões da Chapada Diamantina, Monte Santo (no norte do estado) e nas margens do São Francisco.

À meia-noite, as “alimentadeiras” saem da capela de Rodeadouro para o cemitério, quatro quilômetros adiante, no meio da caatinga. As que seguem à frente do “cordão” conduzem velas acesas. No “cordão” apenas um homem: um rapaz que leva o “madeiro” — cruz feita de jatobá, de dois metros de altura. Na metade do caminho, a visão fantasmagórica, movendo-se lentamente em meio à escuridão, estanca. Uma voz estridente inicia uma ladainha ou um salmo. É o cântico iniciador da encomendação, ou alimentação, das almas.

A cerimônia lembra a via sacra. Divide-se, também, em estações. É o ruído da matraca — uma tábua de madeira com uma argola de arame grosso em cada lado, que produz um som seco quando agitada repentinamente — comanda um movimento brusco de genuflexão. A alimentadeira mais velha, dona do cordão entoa uma lauda. O coro responde rezando um padre nosso. Mais três laudas seguidas da oração, logo após todos cantam o senhor Deus. É a primeira estação.

Mais quarenta minutos de caminhada, a segunda estação é rezada e cantada, em cima de uns lagedões. A terceira estação já é no cemitério. Um cercado de 400 metros quadrados, com uma cruz caiada no centro. Já são duas horas da manhã, quando termina a última oração pela alma de diversas pessoas, antepassados, que foram enterrados ali. A procissão de retorno não é mais feita sob o comando da matraca, mas é acompanhada de cânticos lúgubres.

A alimentação das almas é uma manifestação religiosa que se repete nessas regiões, onde o envolvimento místico das populações chega, às vezes, a ser severamente combatido pelos párocos das freguesias mais próximas. Por isso, o cordão é fechado, não permitindo a participação de todo mundo. A dona do cordão recebe a incumbência da própria mãe, depois de preparada através dos anos. Essa herança perdura a cada geração. É a maneira própria de rezar pelas almas dos parentes e amigos, que a cada ano se realiza na Quaresma. Na Sexta-feira da Paixão, a cerimônia requer um toque de solenidade: todas as indumentárias e os lençóis que encobrem as alimentadeiras são utilizados especialmente para a ocasião.

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Fonte: Site Jangada Brasil in: "Alimentação das alma - Viver Bahia - Salvador, março de 1976".

A gruta que chora

"Gruta que Chora" - Praia de Sununga, Ubatuba-SP.
Contam lá nas bandas da Sununga (1) que há bastante tempo um moça muito bonita, de nome Marcelina, vivia com sua mãe na mais completa alegria. A jovem tinha a pele suavemente morena, olhos claros e cabelos negros, era belíssimo seu corpo de menina nova, graciosa como o quê.

De uma hora para outra, sem que nada acontecesse, Marcelina deixou-se cair prostrada em sua cama simples, sem vontade nenhuma, nem sorrir a bela moça queria. Sua mãe, Sinhá Anália, já havia percebido, não sem preocupação, que a menina estava diferente e parecia piorar conforme os dias se sucediam. Tentou de tudo, chás de ervas, banhos de folhas e flores, mas nada fazia efeito.

Sinhá Anália contava para as comadres o que estava acontecendo com sua menina e todos diziam que era problema de idade. Inconformada, perguntava à filha o que estava acontecendo, mas a menina era categórica, jurava que nada havia de errado e que comia pouco ou quase nada para não ficar gorda como umas mulheres que vira na cidade certa vez.

Não podia ser normal aquilo, Sinha Anália bem o sabia, ainda mais depois que virou rotina acordar durante a madrugada com os soluços da filha. Como pensasse que era tristeza, conteve ao máximo seu ímpeto de correr ao quarto de Marcelina para saber o que se passava. Até que não resistiu e surpreendeu a moça soluçando palavras desconexas, como se pedisse para alguém não partir. A garota estava sozinha no quarto!

Depois de ser flagrada pela mãe, não restou alternativa a não ser contar a verdade. Foi com perplexidade que a mulher ouviu palavra por palavra, tudo meio sem nexo, sobre a história do dragão que morava na Toca da Sununga. Todo mundo conhecia o caso na região e até mesmo evitava passar por aquelas bandas. Os pescadores nem se atreviam a chegar perto porque as ondas gigantes engoliam canoa, rede, tudo. As pessoas sabiam que o tal monstro existia, mas só Seu Antero tinha visto. Era um bicho horroroso, tinha metade do corpo de dragão e a outra metade era roliça, como uma cobra, e se rastejava no chão.

Pois bem, desde que Seu Antero falou do dragão que vivia na gruta, Marcelina não parou de pensar nele, com um misto de medo e curiosidade. Contou à mãe que de tanto pensar no bicho, ele foi lá ter com ela, entrou no quarto no meio da madrugada. Vendo o assombro de Sinhá Anália, tentou acalmar a mãe, já idosa, dizendo que ele ficou encolhido, tão pequeno, que parecia não fazer mal a ninguém, até que virou um homem. A mulher não podia crer no que estava ouvindo, era loucura da sua filha, teria que chamar um doutor, aquilo de mostro virar homem não era certo, ainda mais dentro de sua própria casa. Depois falou que tinha passado a noite embalada nos braços daquele lindo moço de olhos claros.

Mesmo depois de uma noite tão especial, a garota sentiu-se infeliz porque o moço partiu logo ao amanhecer, quando o galo cantou três vezes. Ela ficou no quarto chorando, sem disposição para nada, só pensava em esperar a noite chegar para receber a visita do amado. Agoniada, a mãe da jovem, só podia rezar para todos os santos que conhecia, até promessa fez.
   
Demorou muito tempo para aparecer um velho pobre, andarilho, batendo à porta de Sinha Anália em busca de um prato de comida. Ao entrar na casa, como faltasse assunto, a mulher foi logo narrando o drama de sua filha. Ouviu calado, inexpressivo, e ao fim do relato, disse já ter ouvido, bem longe dali, falar do monstro que atormentava a população daquele bairro. Por tal motivo ele estava lá, para expulsar aquela criatura do mal. Era uma espécie de mago e sabia como fazer isto.

Logo o bairro todo estava sabendo da vinda do ancião e na manhã seguinte todos se acotovelavam em frente à Toca da Sununga. Já no local, o pobre monge ergueu os braços e fez o sinal da cruz, acompanhado de todos que estavam lá, fez uma prece ao Senhor e espargiu sobre a pedra que forma a toca um pouco da água que carregava consigo. Para espanto dos presentes, imediatamente um trovão violento fez estremecer a terra, e o mar se agitou violentamente, avançando sobre a praia, chegando a bater nas rochas. Depois as águas recuaram e o mar abriu-se ao meio, bem em frente à toca, por onde o mostro passou, horripilante, rugindo, para se esconder definitivamente nas profundezas do oceano.

Ninguém mais até hora ouviu falar do dragão. Dizem que Marcelina viveu por muito tempo, acanhada e triste, porém bela como sempre fora!

“Hoje, quem se postar no interior da lendária gruta, perceberá cair lá de cima, das ranhuras da pedra, uma seqüência de pequeninas gotas que se infiltram na areia branca e fina que alcatifa o chão. Dizem alguns que são remanescentes gotas da água benta espargida pelo monge, que ainda caem a fim de que o dragão jamais possa voltar. Outros, porém, afirmam que são lágrimas de Marcelina, que lá voltou muitas vezes na esperança de que o dragão, feito moço bonito, ainda voltasse para ficar com ela a noite inteira até os albores da manhã!”.

(1) Praia da Sununga, localizada na parte Sul de Ubatuba-SP.
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Fonte: Lugares do Mundo.com in: "Ubatuba, lendas & outras histórias - Washington de Oliveira".

O vale das sete mortes

Ainda hoje são muitas as regiões inexploradas do globo, e não é de se excluir que próximo de outros teatros de mistérios tremendas destruições sejam trazidas à luz do sol. Na Índia não deveriam ser poucos, tendo em vista as abundantes referências que se encon­tram nos livros antigos; e uma dessas plagas alucinantes poderia ser identificada com o "vale das sete mortes", cuja localização é mantida secreta pelas autoridades de Nova Délhi, na tentativa de evitar que algum louco, seduzido pelas lendas que falam de imensos tesouros, se entregue a uma aventura quase sempre fatal, como aconteceu aos companheiros de um tal Dickford, há setenta anos.

Graham Dickford era um daqueles aventureiros que pululavam no século passado, procurando alcançar riqueza de qualquer maneira, arriscando mesmo a própria vida ou, até mesmo, a dos outros.

Os funcionários britânicos na índia souberam da existência desse aventureiro em 1892, quando foi recolhido em míseras condições nos arredores de uma cidadezinha, e imediatamente internado num hospital. Em frases entrecortadas, Dickford contou ter escapado de uma experiência pavorosa: junto com outros colegas do seu tipo, o aventureiro conseguira localizar um misterioso vale no coração da selva e nele penetrar. Alguns indianos tinham-lhes contado que lá havia um templo abarrotado de fabulosos tesouros; mas ao invés da sonhada montanha de ouro e pedras preciosas, encontraram uma série de indescritíveis horrores.

Todos os seus companheiros morreram e, embora Dickford tivesse conseguido escapar aquele inferno, tinha as horas contadas: uma violenta febre o sacudia em contínuos tremores, sobre a cabeça ferida não restara um só fio de cabelo e o corpo estava coberto por terríveis queimaduras. Narrou a aventura em delírio, entremeado por gritos desesperados, falando num "grande fogo voador", de "sombras da noite", "fantasmas que matam com o olhar". As várias tentativas de se obter um relato compreensível foram vãs: de hora em hora a narrativa se tornava mais confusa e, três dias após ter sido encontrado, o aventureiro morria de maneira horrível, gritando e agitando-se a ponto de pôr em fuga, aterrorizados, os enfermeiros indianos.

A história de Graham Dickford foi a primeira notícia sobre o vale infernal. Ninguém o levou a sério, até que, em 1906, uma expedição organizada pelas autoridades britânicas confirmou o relatório do desditoso caçador de tesouros — pagando, no entanto, com duas vítimas a incursão ao que foi definido como "um caldeirão de bruxas da natureza".

Naquele ermo mortal reúnem-se os representantes das mais venenosas espécies de serpentes que a Índia hospeda, e também os monstros do reino vegetal se agrupam num amontoado de inúmeras plantas venenosas. Sobre esse horrível vale corre o "grande fogo voador" que o chefe da outra expedição assim descreve: "É suficiente acender uma pequena chama para que a terra seja sacudida por um estrondo infernal e nasça uma labareda que salta de um extremo ao outro do vale".

Muito estranha foi a circunstância em que os dois exploradores ingleses perderam a vida: descendo num estreito "funil", começaram a fazer movimentos curiosos, desordenados, para em seguida tombar no chão. Os companheiros se precipitaram em seu socorro, mas só puderam recuperar os cadáveres, tendo que abandonar rapidamente o local por causa do aparecimento de sintomas de atordoamento e sufocação. Durante a noite tiveram pesadelos terríveis, e um sentimento de inexplicável mal-estar se manteve por muitos dias.

Em 1911, uma segunda expedição penetrou no vale. Dos sete homens que entraram (todos veteranos da selva, habituados a qualquer perigo), somente dois voltaram: chegando ao centro de um espaço situado entre baixas colinas, os outros cinco de repente começaram a rodar em círculo, como autômatos, surdos aos chamados dos companheiros que se mantiveram fora da zona. Em seguida, caíram fulminados.

Um grupo de caçadores veteranos e decididos, que oito anos mais tarde entrou no "vale das sete mortes", encontrou 17 esqueletos humanos. Nem essa expedição saiu intacta: três de seus componentes se atiraram, sem motivo aparente (até a alguns minutos estavam brincando e rindo com os outros), do topo de uma parede rochosa, indo espatifar-se sobre as rochas.

Alguns estudiosos acreditam poder explicar os sinistros fenômenos que se verificam no "caldeirão das bruxas", atribuindo-os a gases naturais, uns inflamáveis, outros capazes de bloquear os centros nervosos provocando colapsos mortais, e mencionando também jatos de vapor de ácido carbônico que, em um clima peculiar, favoreceriam o desenvolvimento de plantas venenosas e o aparecimento de serpentes.

"Coisas demais num espaço pequeno demais", dizia Einstein, embora não a esse respeito. Os argumentos expostos, de qualquer ma­neira, não são absolutamente satisfatórios, sem contar que os "fantasmas" de Dickford, que "matavam com o olhar", não encontram sequer uma simples tentativa de explicação.

Devemos tentar com a "teoria espacial"? Poderíamos então pensar numa série de assombrosos fenômenos provocados pelo emprego daquelas armas termonucleares e daqueles engenhos ainda mais poderosos, que as descrições dos antigos textos indianos permitem entrever... e voltar ao Vale da Morte americano, aos seus répteis rastejantes, lá onde nenhuma outra forma de vida poderia sobreviver, às suas árvores monstruosas, aos vapores irrespiráveis, às fantasmagóricas luzes que — segundo nos conta o Doutor Martin — "surgem de repente do chão, tomam formas que lembram, às vezes, as humanas, deslizam na noite, ora muito lentamente, ora como relâmpagos, serpeiam, erguem-se como chamas, artelhos, de colunas de fogo branco, arremessam-se contra o céu..."
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Fonte: KOLOSIMO, Peter - Antes dos Tempos Conhecidos -  Edições Melhoramentos - 4.a Edição  - 1968.